Porque motivo continuam os homens a escrever poesia?
“A poesia está em toda a manifestação artística transmite o sentimento de plenitude, e o poema pode ser apenas, produto do versejar” – Octávio Paz.
À interrogação proposta respondo, por que não?
Que razões existem para que os homens não continuem a escrever?
Detenho-me no verbo continuar, e ainda interrogo, se houve alguma ruptura que implicasse uma mudança de sentido ou de actuação dos poetas? Se houve, o que foi então?
Octávio Paz talvez me conduza melhor na reflexão que conjuntamente possamos fazer, embora não esteja certo se alcançarei a medida, a exactidão, até mesmo o peso das palavras do poeta; se em primeiro lugar a poesia está em toda a manifestação artística, o que creio, já quanto à transmissão de um sentimento de plenitude ou sobre a possibilidade de ser apenas produto do versejar, me interrogo, indago, procuro compreender.
Começo então, ...
Haverá poetas enquanto houver memória do crescendo imparável dos dias, memória pessoal, memória cultural de gestos, cuidados, afectos, também as primeiras letras escritas, lidas, decifradas e oferecidas; os livros lidos na passagem pela vida, as paisagens que perdemos ou ganhámos, as que inventamos, aquilo com que vamos ficando, o que vamos reunindo. De igual modo e não menos soberano a pele, as temperaturas dos afectos: a solidão, as paixões, os amores, as amizades, também as utopias e solidariedades que no nosso âmago mais profundo se vão unindo, e daí irradiando para o mundo das palavras escritas. Escrevemos, não porque deuses, deusas ou musas nos tenham oferecido versos, mas porque um sopro simples de três ou quatro palavras nos exprimem um sentimento oferecido à página branca, e os demais se entrelaçam na sua configuração própria com um ritmo, pausa, ou um simples traço, o que nos pede o instinto, o que oferecemos à leitura depois aos outros. Nunca deus nenhum me ofereceu os primeiros nem os segundos versos, acontecem-me às vezes os últimos, a observação dos terceiros ou quartos quando o sopro que os terminou, se foi.... Só depois leio em voz alta, ou calado, sabendo que chegado aos outros, outros universos pessoais sempre diversos ou circunstâncias os lerão de forma diferente. O poema já não nos pertence, voou, tem outra voz, tem outra fala ...
Dou conta de que me afasto do que venho enunciando, certamente disso se falou na sessão anterior, mas a escrita emana de uma vivência, de um devaneio, de um raio no caos em que vivemos, de um instante que se nos aflorou dentro; pelas palavras reinventamos um estado de espírito no mundo que não é o mesmo que habitamos, mas foi este que o desencadeou.
Escrevemos então, e com essa experiência escrevemos poesia, dizemos o poema escrito.
Talvez só o poeta torne visível o que toda a gente pode olhar sem ver - será a música para além do ruído, para além da sua mensagem? A escrita é um estado de encantamento.
Estamos perante emoções presentes ou passadas que ancoramos na diversidade de alfabetos. São estes os suportes das nossas emoções. Escrevermo-nos, é então dizermo-nos individualmente, sem perdermos o outro, pois é na relação com o outro no Mundo e no seu mundo que nasce um pensamento, um verso, um devaneio que urge passar à escrita.
Estamos sós e simultaneamente não o estamos ...
Sinto assim, deste modo nascem poemas, contudo sei também que o poema pode ser um jogo, alguns o experimentam pelo prazer do lúdico; um verso acaba, morre aqui, renasce ali noutro traço, noutro verso, noutra configuração, noutro mundo, chego a encontrar-me nessa encruzilhada; resisto, insisto, abandono, chego a inscrevê-lo num título, onde julgo que virão a nascer outros que trarão unidade ao título que por si só já é um verso.
Tento e perco neste jogo, reconheço-me nesta apetência, encontro poetas que trabalham o fragmento dispondo na página exuberantemente, deixando nos nossos olhos as múltiplas leituras que nos oferecem esses mundos.
Sou um poeta dos dias comuns e da memória, assumo a dificuldade de me pronunciar sobre o que faço. E o que escrevo, a poesia, não o faço nem estado de entendimento nem de discernimento. Não tenho um programa, e, se, todavia, chego a tê-lo, esse programa é um título; só uma vez o consegui levar a cabo, num conjunto de poemas muito invariáveis e desiguais no seu conjunto, a que chamei Álbum de Resgate. Toda a matéria verbal arrancou de fotografias, onde eu nem sempre aparecia; os meus afectos pairavam por lá, por vezes intensos, contraditórios, negativos, positivos, havia perplexidades, alguns pormenores, ocupações, distracções de menino, de adolescente, ou já homem, procurava uma memória num momento de mim, afinal o que me impulsiona, move e me escreve por fora, o dentro. Esta recuperação, nada mais é, ou foi, do que uma busca de sentidos, uma vida olhada para trás, reconhecida, com a possibilidade de ser escrita, sabendo que de outra forma o passado, quase hoje acto já escrito, seria outro.
A arte está em toda a parte, assim se deixa ver, registar na memória, evocar, convoca-nos à nossa radicalidade humana, por vezes agracia-nos, desmerece-nos, mas, no entanto, o que seria do mundo, sem a arte, o ofício que o senso comum afirma de um poeta: cabeça na lua, distraído, nada disso conduz a lado nenhum. Por isso partilho convosco o que Agustina Bessa-Luís afirmou na belíssima biografia que escreveu sobre Maria Helena Vieira da Silva, intitulada Longos dias têm cem anos: «A arte é, provavelmente uma experiência inútil, como “a paixão inútil” em que cristaliza o homem. Mas inútil, apenas como a tragédia de que a humanidade beneficie: porque a arte é a menos trágica das ocupações, porque isso não envolve uma moral objectiva. Mas se todos os artistas da terra parassem durante umas horas; deixassem de produzir uma ideia, um quadro, uma nota de música, fazia-se um deserto extraordinário. Acreditem que os teares paravam, também as fábricas; as gares ficavam estranhamente vazias. As mulheres emudeciam (...) se os poetas se calassem subitamente e só ficasse no ar o ruído dos motores, porque até o vento se calava no fundo dos vales penso que até as guerras se iam extinguindo, sem derrota e sem vitória, com a mansidão das coisas estéreis».
Será por isto, e apesar da dita inutilidade deste ofício que nos abandonamos à Arte?
Será pela “inutilidade” deste ofício que os não directamente envolvidos se sentem convocados, querem conhecer, sentem curiosidade, perscrutam?
A Arte abre e alimenta diálogos, gera contradições, interroga-nos, impulsiona-nos e move-nos, a esterilidade é-lhe estranha. Toda e qualquer manifestação artística corre mundos, desprende, resgata, eleva, constrói, destrói e só é assim quando no diálogo entre a obra e quem a sente, se encontra um sentimento ético-estético na sua memória e na sua experiência. Por isso, a Arte abre fendas, interrogando-se e interrogando o Mundo, deixando em movimento viagens interiores, palavras soltas, imagens diversas e sempre diferenciadas num número infinito de homens e mulheres.
Um poeta cria universos percebidos na imensidão diversificada de leitores. É na relação entre o universo criado pelo poeta e os universos configurados posteriormente pelos leitores que universos pessoais são tocados distintamente. A poesia começa ou pode começar quando a rua ou o pequeno mundo observado não oferece respostas nem a ela própria nem a qualquer divindade, por isso o poeta cria em confronto com o mundo, o poeta olha e devolve-nos o seu olhar, mas vê, encontra, ritma, o que lhe foi oferecido ver. O leitor sentir-se-á desafiado, fruirá, persistirá à espera de revelação ou surpresa...
O «que fazer do poeta» é quase sempre uma tomada de posição sobre o mundo, onde se acorda, adormece, devaneia, estilhaça por dentro, o que se lhe ofereceu e assim se configura todo o corpo procurando no âmago a unidade que da arte se vai colhendo, desfazendo, refazendo, apaziguando ... . É um trabalho de linguagem onde imperam a critica irónica, a contemplação muda, a descoberta do detalhe a sobreposição de linguagens, a imprecisão do sentimento estético. É sempre uma reinvenção, uma desarticulação da linguagem corrente na sua norma habitual, não se deixa confiscar, devolve-nos a nossa imagem por vezes em caleidoscópio, por isso a vejo como um conhecimento que irrompe não pedindo licença, a outros conhecimentos, é individual , um caminho operado na emoção estética, um rasgão impossível de ser generalizado, e no entanto é um bem ou também chega ser um mal, só o gosto por ela a escreve ou prescreve. É uma prática do singular, o poema traz a sua interrogação, não a sua resposta, não é provisório nem findo, nem morto, nem somente vivo, escrito no livro, ou na multiplicidade de livros, procura-se o poema, é o próprio tempo que o limpa, e o traz vivo da morte.
E ASSIM ESCREVI!
José Ribeiro Marto