sinto-me dentro da possibilidade de um poema e não há aqui ave ou pássaro a almejar liberdade, sou eu que voo sem a retórica dessas figuras, sou o que é maduro e periférico à luz dessas palavras
contra os muros também, essoutro reflexo vário , onde se diz sempre branco ou de pássaros nus
esse espaço de papel, onde se inscreve uma àrvore frondosa ou despida, nunca desgrenhada, arco de metal ardente, barco derrubado nas águas, nunca
a provir ao mesmo
hoje pontuo a respirar , só o parco , nunca o exultante, não há nada a esgrimir
avesso sou ao efeito agramatical, assintáctico , à sevícia do ornamento, à palavra de pedra, jogo de louros imperfeitos , comandos freáticos de linguagem, purga frenética distensão eléctrica
às vezes a rima solta, um respirar de ar, muito linguajar coeso, não toca.
é-me a roça de um cutelo o gesto preferido do talhista,
o que recomenda, talha, balança, embrulha , se refaz no troco e no assobio,
falo da carne morta, não da viva do Outono
de uma figura de retórica pululante como um enxame de cogumelos
na árvore , junto à base do estremeção de luz ou magro medo.
a paisagem apruma-se, afeiçoa os olhos aos quadrados dos canteiros,
as flores cintilantes não são nomeadas, são só flores
as àrvores são àrvores e todas nos talham na mesa antes da gaze ou do sopro higiénico
de um soluço periférico
não há, rareia o espaço para o fumo, a cerimónia é cada vez mais limpa
o corpo é cada vez mais cinza porque não lhe falhou prazer
porque não se desfez em artifício laboral, não foi prega
não foi adorno, véspera inquieta, dia ancestral , luz, mas poalha inaugural
sinto-me dentro da possibilidade de um poema e tudo o que respiro é sideral
ar , casas , tantas casas , asas muito altas sem salvação de esferas ,tudo na poética,
perfeitas armadilhas de mundo a várias cores e agora há que imaginar os seus tons a sua palavra difícil, o seu improvável calor
digo que não basta uma fonte e um bolero de arrebique , um torneado de vozes e das mesmas palavras
é Outono, gosto de romãs , sempre gostei de romãs e de marmelos só selvagens irradiando cor por entre as hastes verdes , vidros de garrafa
é Outono no calendário por que o Verão anda por aí a nomear-se,
anda por aí nos espelhos em frente, olhados dia a dia,
olhados do lado da vida, cheios de rumo indiferentes ao cascalho, ao lagarto que hiberna com o corpo cheio de luz áspera, mas diferentes na irrectidão de uma curva,
da luva , um segredo alheio, fazendo-se de renda e mealha , falta-lhe o orvalho, a cor é preto vivo , o pingo nasce de uma manhã
igual a tantas outras , irrepetível, e tudo o mais que de um momento é rimático, dizível
vivo no silêncio, mas talho-me de palavras crio-as na abundância para me calar
e a sós com elas me dizer ...
sinto-me na possibilidade de um poema e na espera de qualquer fruto sonolento do verão estelar macio do calor dos dias e de espera
José Ribeiro Marto