16 setembro, 2008

Sem costuras a paisagem

a usura dos campos a usura daquele campo de tantos campos

um soluço de sangue na paisagem


paro escuto nas paredes brancas as hastes dos lutos dos arbustos

derramados sobre os muros

fujo e que adianta

já cantou uma avezita assanhamento

na lonjura do carro


tudo perdido e a rebater-se nos ouvidos

tudo tanto e menos quem fala aqui

estou só no lés a rés

o trilho velho do pastor da cabra só réstea de tanto sol

o cão vermelho assinalava parando a espaços um latido muito aquém dos nómadas

só sombra

um rapaz trouxe inocência na abertura do postigo da porta

mostrou uma faca nas mãos nuas desafiando dedos

e veio um grito fundo de dentro :


brinca com a caixa azul

a faca brinda-me os calos

brinca com a caixa


respira o búzio repousa no silêncio dos dias



há o mar


lembrava que havia o mar gritava

o grito não podia matar a surdez daquele casulo de mundo

sempre intenso cá fora na corrida do cão adiante da cabra e do velho

o velho parado a cabra andando farta de caminho

o velho de amplo assobio duas chamadas mansas tudo parado

dava voltas de pau inusitado aos arames presos no pneu

no baixio do descampado

depois seguia

seguia um trilho passado e via passado

aquém-nómada aquém- mar aquém- terra

além duas árvores rugindo no esplendor do vento

nas asas dos pardais sobressaltados de retorno e migracões de horas

retorno á noitinha vindo dormir o sono dos trigais

à criança doía-lhe a casa como esconderijo dos dias do tempo

e preso á faca e á caixa do búzio ia a um mar perto ao som longínquo

nas mãos da avó as fotografias comidas pela madeira

a postura de parede os encaixes na moldura

O povoamento do tempo

e a criança tinha os olhos comidos pelos dias feitos noites e crescia na faca uma impressão também de noite muito rente a muita morte a porta fechada e

á loucura da passagem do homem e da cabra

veio um sobressalto e abriu o postigo

sem que a avó lhe gritasse é do tempo

é da mentira do tempo tão conjunta á verdade que se vai unir ao mar

escuta o búzio e distrai-te

José Ribeiro Marto