31 agosto, 2008

oração de mãe meninha - Dorival Caymmi (1914-2008)

Ai! Minha mãe
Minha mãe Menininha
Ai! Minha Mãe
Menininha do Gantois
.
A estrela mais linda, hein
Tá no Gantois
E o sol mais brilhante, hein
Tá no Gantois
A beleza do mundo, hein
Tá no Gantois
E a mãe da doçura, hein
Tá no Gantois
E a Oxum mais bonita, hein
Tá no Gantois
Olorum quem mandou essa filha de Oxum
Tomar conta da gente e de tudo cuidar
Olorum quem mandou eô ora iê iê õ
.
(composição: Dorival Caymmi, 1972)
.
mt

deixa-me servir-te o café da manhã

(uma nuvem quente líquida

fumo voado)

as tuas mãos abraçadas

ao azul da chávena o mesmo sono

nada estremece

o lume fugindo no ar limpo

fumegante vai-se aquece


lá fora a manhã quebra-se

no guincho do eléctrico


o sol corre pela mesa

o pão perde a forma


são as tuas mãos

separando o miolo da côdea

a hora é aberta

o sol na boca

o sorvo do café


festejas na respiração

tensa

a surpresa

luzes na manhã

despertas


José Ribeiro Marto

30 agosto, 2008

Como um líquido...

há-de colher-se
um pranto
no olhar dos girassóis.
numa faixa
de feno
por essa hora
o rosto
renasce nas mãos
como um líquido
onde me lavo do rio
entre os olhos do vazio.

Graça Magalhães, 30 Agosto 2008
Photobucket

28 agosto, 2008

O FANTASMA DA GEOGRAFIA




atento – ligado a
um emaranhado estéril de constelações estranhas
ligado à sede incompreensível
das pequenas superfícies – o sentido rotular da imagem

ainda ontem robert altman deu-me um inverno para dormir
com a raposa do caminho-de-ferro:
o covil frágil
esboçado no açúcar da neve
o vislumbramento da morte acalentado
pela doce prostituta perdida no nevoeiro
do ópio

cai a frase no painel de transístores
pesada e dura
ensalivada no cais da língua

«o inverno come os ossos negros da prostituição»

sim, acima de tudo
o aborrecimento de estar circunscrito
numa arquitectura nodal das sombras
nas circunvoluções assintomáticas do cérebro:
o fantasma da geografia

nasce dum escorregar simpático nos pisos
progressivamente escavados por detergentes militantes
resume-se na força do líquido
sobre todas as superfícies
amplitude da ambição do eu recolocado no espaço
estrategicamente

a angústia do veneno ● o amar corroendo

certo de querer morar na imagem
habitá-la no que é mais profundo
fruir desprendidamente os veios da polpa
do que se vê
fruto esculpido por lâminas
de todos os órgãos

o homem baleado chuta elipticamente a neve

a pupila concerta a janela entre dois folhos cárneos reflexos

o duplo prepara-se para morrer silenciosamente



Porfírio Al Brandão
____________________________________________________________
s/ título; André breton, Greta Knutson, Tristan Tzara, Valentine Hugo; 1936

27 agosto, 2008

-ainda não sei se te amo

...
..
.
___________________________________
_______________________um estilete finíssimo . in cesto . os corpos vacilam . em lugar ermo . requero.te ____________________________________________
_________
_______________________________________
______________________
..
...
_________________________.

gabriela rocha martins

PRAIA DA CATUMBELA

...e se a tempestade arrastar o ganha-pão destas famílias? Com o céu carregado, a praia deserta e a interrogação na cabeça, fotografei estes barcos que afligiam. Sobre isto, conversei com o Augusto Mota, que compôs este "slideshow":

26 agosto, 2008


Minha árvore
fruto vermelho

continuamos medindo os amantes
as metáforas por dizer
molho as pérolas na pele e desejo
colares de âmbar com o teu rosto
cabelos de seda bailando
sobre olhos aéreos
vou acreditando no verniz das manhãs
nos átomos de sol perfumando o sonho
ainda acordo a roubar a noite
ainda remato o esmalte rasgado
amaldiçoando a memória do perfume.

Graça Magalhães, 2008, Lavrar no Corpo das Algas, Palimage.

25 agosto, 2008

tradução de poesia hebraica para espanhol

.
Partilho o contacto (clicar no título deste post) do 
"blogue de-canta-sión"
 que, como aí se pode ler, 
consiste em "Un blog de traducciones de poesía hebrea de acá y allá, de ahora y otrora" - por Gerardo Lewin.
.
(Desculpas se já conheciam.)
Abraço! mt

desisto do brilho dos astros, das cascatas de pedra
do céu etereamente louro.
vou por aí, sem dizer nada, aludindo com os olhos.
desisto de aferir a noite perdida, de procurar as rosas,
ouvir a carne,
de permanecer entre a dor e um abismo.

se vires, meu amor, o silêncio levar a água aos gerânios
será a minha sede morta, ou viva.

mariagomes
2 de Fev.2006

in Isla Negra ( edição de Amélia Pais e Gabriel Impaglione)

23 agosto, 2008

Puedo escribir los versos más tristes



Pablo Neruda
postado por José Ribeiro Marto

19 agosto, 2008

Pela última vez.

Beijo
Pela última vez
Cada canto de luz
Cada caminho de lábios.
Morrias devagar
seguravas um rosto
de leão abandonado
entre as coisas vulgares.

Dentro da mala trouxe pedaços
De lua florindo a primavera

os olhos azuis dos peixes
predadores feitos de anzóis
que sangram todas as feridas
trouxe as noites perdidas
as facas junto ao precipício
Dos rostos que matei.


Graça Magalhães, Verão 2008.

sinal da confirmação

A meio de férias, o meu Abraço e um link, para todos/as.
 :-)
Até breve! 
maria toscano

18 agosto, 2008

Que um dia você não se perca

Que um dia você não se perca
entre a cozinha e o corredor.
Que vire Houdini e abra
correntes e baús fechados.
Que não assuma dívidas
por maternas fibras desdobradas.
Que não se obrigue a nada
que o coração não mandar.
Que não tenha medo do mundo
nem das cidades nem dos subúrbios.
Que não tema o pânico de si
e como spiderman agarre sua alma.
Que se perca em amores impossíveis
mas possibilite-se.
Que desperdice o tempo
pois a vida não usa relógio.
Que cresça,
diminua,
encolha e alargue
quando der na veneta.
Que desoriente como Alice,
que apresse como o coelho,
que escape como Snark,
que confunda como Peter Pan.
Que fuja de Otelo
mas persiga noites quentes de verão.
Que seja o que já é
o que será
e o que já foi sendo.

poema de Marcia Frazão / Brasil, 2008

foto e manipulação cromática de Augusto Mota, Agosto de 2008
planta-dos-balões, ou flor-borboleta, paina-de-seda, paineirinha (Asclepias physocarpa)

16 agosto, 2008

Pastorela

oh borreguinhas comendo
nas ervas devagarinho
se eu de amor adormecer
dêem um balido baixinho


oh campainhas singelas
humildes de tanto trinar
abram um carreirinho
nas ervas muy devagar
se o meu amor passar
no canto de um passarinho

José Ribeiro Marto

13 agosto, 2008

ANCORADOS NA LUZ

O corpo, claro, o corpo;
Este meu corpo é que me revela aos outros.
É ele, não há dúvida; toco-lhe apenas
Para comprovar a sua imaterialidade.
Pesa uns quilos ainda, ocupa o seu espaço
Na casa e no mundo.
Tropeçam nele, reparam nele;
Às vezes, há até quem lhe faça uma carícia,
E ele arrulha de felicidade.

A alma, claro, a alma;
Esta minha alma escondida dos outros,
Sinto-a vibrátil sob cada poro da pele;
Vasta como o universo,
Cheia de recantos sombrios,
Vales iluminados,
Carregada de memórias,
Cheiros, sabores e saberes,
Onde ecoa ainda
O grito que eu dei relutante ao nascer,
E o espanto e o encanto de estar vivo
Que me assoma amiúde aos olhos.

A alma e o corpo, isso, os dois:
Um dentro do outro,
Os dois que são um só,
O corpo que apodrece feliz
Dentro da alma,
Diluindo-se nela pouco a pouco.

A alma, isso, a alma outra vez,
Triunfante, definitiva,
Com todas as memórias do que foi,
Com a história do crescer do corpo,
Do amanhecer do amor,
Da emoção, do orgulho de envelhecer
Em sabedoria e ternura,
Para que um dia, ah, um dia,
Possa viver, para sempre, rarefeita, irmã do ar,
Ancorada na luz.



Sento-me no banco
Do pequeno largo –
O vento arredonda
Os meus sobressaltos
E perde-os no ar.
O dia arde ainda na copa das árvores,
Nas asas dos pássaros,
Nos olhos dos velhos
Perdidos no tempo –
Meu corpo é um barco
Ancorado na luz.



Voa, meu corpo,
Na crista do vento,
No bafo do suão
Que arde violento
E varre as planuras
Como um lobo de lume –
Voa, meu corpo,
Ancorado na luz.


Falávamos do tempo –
Tocaste-me ao de leve os cabelos
E foste abrindo clareiras para o vento passar;
Perto, uma mulher cantava em surdina,
Num quintal, encostada a um muro de pedras soltas –
O sol do Alentejo cegava-nos as palavras:
O que íamos dizendo sobre o tempo
Escorria-nos agora dos nossos olhos
Ancorados na luz.




poema de António Simões, Évora, 9 de Julho de 1999.

fotos e arranjo gráfico de Augusto Mota.


(sobre estas fotos ver comentário 1)



12 agosto, 2008

do silêncio

guarda os teus versos como segredos
nas tuas mãos bem cheias
pobres são os tempos em que vivemos
sonhamos sorrimos e morremos

os dias esses só são inteiros se houver devassidão


diz os teus versos como segredos
em cofres trémulos como os dedos estão nas mãos
o tempo no qual vivemos é uma casca de trovão negro
um troféu um asco um pulmão pobre uma horda um veneno

José Ribeiro Marto,

11 agosto, 2008

09 agosto, 2008

Morrer Morrindo

foto de Pedro Carvalho / Ortigosa, Julho de 2008


Quando o sol esfriava a cabeça do cristo redentor e o fogo do desejo piscava no céu, disfarçado em primeira estrela, a língua da cidade balbuciava orações. Ave marias. Pai nossos. Salve rainhas. Credos. Água no copo. Radiofonia romana em césares subindo ladeiras.
Depois, quando a noite caía, acendia-se uma vela. De sete dias. Para um anjo em guarda. A intensidade da chama media a espada. Longa, se intensa; curta, se pálida. Em casos extremos as asas e a espada eram reforçadas pelo éter das almas benditas. "Alma dos inocentes, daqueles que morreram rindo com a boca e os olhos", dizia Benedita, a babá de Mauro, meu irmão caçula.
Morrer sorrindo... Como alguém pode morrer sorrindo?
Morrindo?
Morrer era então morrir. "Mas só para poucos", Benedita revelava, iluminada pelo tremeluzir frio da vela.
Quando morriu, num casebre perdido na clareira de uma favela, congelou o olhar de esperança e os deixou de herança para os filhos. Um tico de esperança muita. O mesmo tico que
Deus deve ter deixado quando morriu para criar o Todo Tudo Possível.




Marcia Frazão, Brasil, Agosto 2008

aberta a porta do mar imenso



Photobucket



a minha mão repousa sobre o teu corpo,
e sei que sou mortal.


nada te dou que seja só meu.



ofereço-te sombras sulcando a beleza das coisas
pedras preciosas de barcos e viagens ao sol
reflectidas na prata do tempo.


flutuam nelas a água da minha solidão
e o imponderável infinito
que nos separa.

terás sido outrora uma chama
que se desfez no meu peito em perfume
de rosas



maria azenha


óleo de Joop Frohwein

08 agosto, 2008

QUANDO É QUE O VENTO TE LEVANTA NO AR ?

foto de Pedro Carvalho / Ortigosa, Julho de 2008


O teu problema é ainda o peso -
Tolhe-te os passos, os voos;
Os braços de chumbo tombam
Para o chão; o penedo da voz,
Sempre que falas,
É duro como granito -
Tudo isso pesa, pesa demais,
Para ascenderes ao alto,
Lá onde as fibras subtis do vento
Tecem os tules, as ténues neblinas
Com que se enredoma a manhã.

Há ainda essas tuas pernas de basalto,
Esse coração pesado de tanta dor,
Os olhos onde as lágrimas
São de lava incandescente
Que te irrompe das entranhas -
Não sabes como irás sobreviver,
Mas talvez ajude a saber
Que aquela que te deixou para sempre,
Aquela cujas cinzas
Espalhaste para dentro da terra,
Está à tua espera numa curva do tempo,
Numa curva do sonho,
Para te levar consigo
Para o prometido regaço dos deuses.
Vá, senta-te à porta da tarde,
E deixa que o rumor das vozes crepusculares
Dos que regressam a casa famintos de ternura,
E os ruídos da terra,
E de todos os seres que se preparam
Para mergulhar na noite,
Te envolvam corpo e alma -
E aligeirando-te essa dor infinita,
Encontres no perfume
Das rosas que perto te inebriam,
O impulso decisivo para que ascendas no ar
E regresses ao amado coração de tua filha.


António Simões, inédito, 2002

foto original de Pedro Carvalho
manipulação cromática de Augusto Mota

texto transversal


06 agosto, 2008

Uma coroa no muro

uma coroa de sangue :

- disse alguém –além no muro-

e passou indecisa, não se juntou .

estava tanta gente calada e reunida,

estava tanta gente contida no lodão,

na sombra ramada e escura

na rua

logo na manhã inteira, depois a tarde

alargando ramos e folhas verdes

sobre o telhado, coando o sol...

a árvore dispersou os sonhos da manhã

a coroa de sangue estava no muro

e vinha um bando de borboletas desdobrar asas

no assento branco e vermelho da bicicleta,

nas rodas, nos carretos inquietos, nos pés da criança

a criança rolava e rolava velozmente,

tudo que lhe daria corrida pelo mundo

nos instantes de olhos desviados arduamente

o mundo era pequeno; uma rua, um troço de outra,

meia-avenida, o bastante na manhã

enquanto se velava alma perdida,

a quem ninguém viera

reconhecer os nós dos dedos,

o mais certo sinal que havia na coroa da manhã

espelhada na cal dos muros

e ali jazia pela Liga dos Bombeiros


José Ribeiro Marto

04 agosto, 2008

por ser mentira e verdade


sempre que passa na rua,
passa mais dentro que fora;
e em minha alma passa nua,
(ela sabe disso e cora);

que eu a dispo com os olhos,
sem que haja lubricidade –
deste modo eu vejo os outros,
(mas disso ela não sabe):

despidos até à alma,
(que é a pele verdadeira);
é assim que a vejo a ela,
mesmo que ela não queira.

e ao passar dentro de mim,
‘té fora de mim perfuma,
por isso cheira a jardim
meu quarto, perto da uma,

que é quando ela se aproxima,
mesmo que seja mais tarde,
por estritas razões de rima,
por ser mentira e verdade;

ao sonhar, quando adormeço,
nesse sonho revelado,
um corpo que desconheço
respira brando a meu lado;

meus dedos tocam-lhe a pele,
e sua alma desnuda
não tarda que se revele
na carne em que se transmuda.

e depois não acordamos,
(talvez nem haja depois),
para sempre aqui ficamos,
nestes versos, casa de ambos,
somos um e somos dois –

poema de António Simões, Junho de 2008 / fotos de Augusto Mota, Agosto de 2008

pimentinhos decorativos: Capsicum annuum, cultivar 'Tennessee Teardrops'

03 agosto, 2008

anda meu amor estava à tua espera

anda meu amor estava à tua espera
anda ver o búzio no rochedo
o som cantado
no sopro da respiração que ao mar é dado

é no seu sal cavado e mudo
que há o coração natural do mundo

anda meu amor ver ali na àgua
ali está um búzio vermelho uma flor
ali corre a àgua cantando como num espelho
a deserção e a mágoa

ali vai sumindo ao violino as cordas
ali se vai tocando de ouro as horas
e se vão juntando hastes da àrvore
que fugiu do barco
e tu ficaste no sono de palavras
para de azul eu te cantar

José Ribeiro Marto






01 agosto, 2008


no tempo que defendo os areais sem fim
num modo de imaginar a secura concisa
adiei os barcos à deriva

tudo se retém no meu amado : os pássaros verdes
o elevado perfume daquela mancheia de sol
um mar profundo inacessível.


maria gomes