23 novembro, 2008

E(ra) o tempo

Videira (Vitis vinifera) - foto: Augusto Mota
(a João, meu filho)

A cidade adormeceu na encosta da consciência
dos homens de duplo olhar - angélico, satânico.
Irreconhecível, corre o rio à margem de azuis;
as tuas lágrimas perfumam lírios!...

Como gritos sinto coisas aflorarem à memória:
- o copo, a chávena, o gosto infantil do leite bebido pelo pires...
o branco dos lençóis que se estendia até o sol corar o horizonte.
Nos canteiros, as videiras viviam em acidez adunca,
as lavadeiras elevavam cânticos à sombra dos mamoeiros.

Era o tempo em que persistiam buganvílias a janelas fechadas,
e os patos faziam voos rasantes ao superficial suicídio das acácias,
num parecer de sangue manchando o céu aberto.
Seria um prenúncio ou a conjugação de cores que impressionava?
Sei que hoje, meu filho,
as árvores baleadas são acariciadas pelo tempo
que ostenta cicatrizes sem vitórias.

mariagomes
Coimbra, 2003