18 outubro, 2008

Lisboa Revisitada

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estrangeiro em lisboa, venho aqui para descobrir
bach nas avenidas novas e algumas mulheres sentadas
nas escadinhas do duque. esta é uma cidade odiosa, de tão branca
que é – e suja, sempre a lembrar-me do que devo esquecer
neste rio sem naus, mas cafres insuperáveis. o certo
é que durmo na travessa dos fiéis de deus, com frio, e agastado pelos
ruídos da praça, enquanto tu, camões, pareces impassível à arruaça
e na tua sereníssima imanência nem dás pela promiscuidade citadina.
odeio, abomino esta gente que não me olha nos olhos, e tem, 
abertamente, um linguajar de réptil, sem matriz, catedral, 
solenidade: anda na rua como se fosse cega e acresce ao desvario um 
esbulho de luz incoincidente com a minha, intratável, entoação
nortenha, que, talvez, ao antónio barahona não destoe, já que pede 
por nós em grego, e aramaico, e árabe. lisboa, a estas horas, nem 
sabe o que é chuva, água, tejo – ocupada nas compras e sem novas de 
ulisses, ou das barcas, vibra de cheiros maus pelas vielas, que o fado, 
de alguidar e faca, mais arrevesa do que sabe aproveitar.
como viver aqui me é desconcerto e acirra a vontade de morrer: vejo 
este pessoa de bronze à porta dos cafés, a ser contaminado por uma 
freguesia tão absoluta e primitiva que lembra o estado novo, que 
vomito, vomito como um corvo.
se por este caudal viesse, ao menos, o cesário, talvez transfigurasse a 
aversão em poema e o sarcasmo alinhasse na rua do trombeta algum 
montante de ternura avulsa. mas não. eu até em telheiras não estou 
bem, esse lugar de múltiplos desgostos, onde perdi, além do amor, 
um cão, um cão quase redentor. ah, lisboa: hoje, às três e meia, vai 
pelo mundo uma promessa de orgasmos pela paz universal e de ti 
nada se espera, alheada que estás das coisas transcendentes, com a 
cauda entre as pernas e o olhar sem olhar o horizonte, onde uma 
virgem seminua de novo dançaria para ti,
se merecesses, ou a chulice encartada não prevalecesse. tivesses tu 
coragem e ias a s. bento queimar o molho aos torvos que, para seu 
governo, nos andam a tramar, ou viravas a mesa, ou partias a louça, 
desterro nosso sem qualquer desterro.
serias, por uma vez, implacável, a fazer corpo com o futuro, em 
nome do que vale, sem misérias ocultas e esperança justa. mas não. 
tu só te agastas pelo que é inútil,
com poesia melíflua do quotidiano e centros comerciais a liquidar 
enigmas estúpidos. olha as pontes, lisboa. olha, lisboa, os teus 
subúrbios. há mais beleza na pedreira
dos húngaros, ou nas arribas de cacilhas, que tudo em volta do 
castelo, salvando-se, talvez, pelo sortilégio, são domingos e as 
paredes calcinadas, vítimas de um terramoto, onde eu, às vezes, vou, 
não para falar com deus, que não existe, mas para apreender
um pouco mais de bach, na parte que lá mora, e ver, ao alcance da 
mão, outras mulheres sentadas. é pena que o bocage, lisboa, cá não 
esteja: cansado da bicheza, por certo encorajava diogo alves a 
regressar do enforcamento para dar continuidade às obras
de limpeza a que deu início com a quadrilha, ali para o aqueduto, 
para acabar de vez com a cidade branca, deserta, a matar à nascença 
os távoras que pode, ou quem resiste. pergunto pelo almada e venho 
vê-lo a alcântara, ao cais de embarque, à margem de belém e os seus 
pastéis, de nata e presidência: apaziguam-me mais estes painéis,
de alvoroçada partida e descoberta, que uma ida à gulbenkian, ou ao 
príncipe real, se bem que nos seus jardins a noite se suspenda e um 
sortilégio vele, entre os ligustros, a noite imensa. mas o almada não 
era de lisboa, tal como não era o botto,
(ou o herberto, a natália: gente de ilha/ gente de quilha, digo eu,
que também fui concebido numa ilha do porto, e se quisesse não, ah, 
não enlouquecia), tal como não são de lisboa os habitantes de lisboa,
ou nós, artistas desta hora, que, não sendo de alguma parte, vamos 
da graça a alfama
com o coração apertado, num vinte e oito que nunca tem destino.
ah, que desgraça não sermos de saturno, que desgraça a nossa 
transcendência não ir além da gare do oriente e ter que estar sujeita
a um restelo de velhos e furores adolescentes, sem génio nem 
remoque, mas sempre, e só, tormenta. é que
de adolescentes nem é bom falar: à luz do lampião, eu vejo-os pelos 
bares a cair de bêbados, sem mãe que lhes acuda, ou tirocínio, que o 
mais que sabem é exctasy e shoots, assim, em inglês, já que ler e 
escrever no idioma de que são lhes passa a milhas, no caso 
americanas: as jeans puídas e os cabelos soltos, que não vêem sabão 
vai para semanas, a beneficiar, sem que o suspeitem,
o neo-liberalismo, são o sem sentido de uma rebelião
sem turbulência, manada para abate um dia destes. e quanto a 
velhos, estamos conversados: a vetustez de oitocentos anos, nem para 
os sapatos mija,
ou desfeiteia viúvas, de pátria ou sordidez. ah, lisboa, nem o putedo 
infrene dos teus becos é valia que baste. eu, que não sou cliente, 
atrevo-me a dizer
que não há puta mais repugnante que a puta de lisboa, sendo lisboa
a puta desgrenhada que se vê, que nem um bom mergulho purgaria
ou, ainda que por empréstimo, poria algum feitiço langue, ou 
dengue, ou o que fosse. mulher sentada que valha em lisboa é, tal 
como eu, estranha a estas paragens:
falo de uma eslava que conheço, que é bela como a planície 
alentejana, assim como são belas as cabo-verdianas que se sentam na 
relva para que o esplendor coaja – coaja
e ponha em marcha – a indizível matéria do desejo. um poeta cai no 
seu campo electromagnético e é como se entrasse no mar ou no 
regaço de um sonho onde a canela, a mandrágora e o rábano picante 
se reunissem para um manjar de deuses, irrecusável. detestável 
lisboa, que posso mais dizer para contrariar-te, mesmo a pagar 
imposto, com e sem valor acrescentado, além da derrama? desde que 
o fialho de almeida se foi que os teus gatos, lisboa, são ramelas 
andantes, a comer do próprio vomitado,
sem miados à lua e cenas langorosas nos telhados, a incentivar 
amantes. há, é claro, as coisas do botelho, onde tu, lisboa, talvez 
não por acaso, apareces vazia no retrato,
sem notícia do ajuste de contas necessário com os cobradores de 
impostos, as raparigas de cabeças ocas, os rapazinhos lúbricos dos 
ginásios que se enfeitam para os rapazinhos lúbricos dos ginásios, as 
matronas do chá, que enfermiços canídeos arrastam pela trela,
os homens de negócios, cinzentos, como sempre, a traficar crianças e 
assassínios, e os cônsules, os tribunos, os pretores, e até com os sem-
abrigo, que dormem nos portais e perderam, entre tudo o que há 
para perder, a clareira após o abandono.
há, é claro, esse secreto adeus do baptista-bastos, a enredar real na 
realidade e a viajar por uma deriva ignóbil, nas ruas da amargura, a 
fazer do obsceno obra acabada, como só pode ser o que é do homem. 
há, é claro, o gomes leal, o o’neill,
ou o cardoso pires, com anjos escarlates a tremeluzir nos céus, por 
pura limpidez de sensualidade e ancoragem terna. mas tu, lisboa, 
não podes entender a aristocracia que há no povo, não podes crer no 
poder da arraia-miúda proto-contemporânea,
nem mereces o vítor silva tavares, a congraçar a emenda e o soneto, 
sem mais tristeza possível que a dos barcos atracados no cais das 
colunas, agora inexistente, pelas obras do metro, a nova santa 
engrácia. melhor fora, lisboa, que fosses moura, ainda, e que às 
trindades se não ouvissem sinos, mas o sumptuoso grito do 
almuadem. ouvindo o chamamento, sabendo que a cotovia convocava 
à oração, ias, por fim, lavar-te.
e, assim, lisboa, talvez fosses o brilho verdadeiro de que brilhas 
ao sol, como uma ave – muita branca por fora, muito negra, por dentro.
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Amadeu Baptista 
(Poema lido pelo próprio aquando da apresentação dos seus 3 últimos livros - na Fábrica Braço de Prata e na Fnac do Chiado, Setembro/2008).
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