21 dezembro, 2008

O MUNDO ...

O mundo insiste no abandono, apraz-lhe esta glória, este rio de sinais grandiloquentes, a desmesura com que aquieta o que é vivo, o que sobressai
no rosto de um fuzil de uma boca presa a nada, só gatilho, estaca, ventre

O mundo mergulha os ares, o traço de aviões, o que fumega, estrebucha e cai

É ruído de sangue insolente, frio como as olheiras de um doente
deleita-se com a gaze e com as contas correntes, o saibre antigo
o alçado da velha casa, a sã ponte quente, inteira só por dentro

Mergulha nos sentidos na púrpura de bronze de ferros e de vidros
nos velhos testemunhos dos vorazes senhores, pasmo de todos os ouvidos

Ao mundo não falha lágrima, a precisão do cronómetro, a negociação com os sentidos
o estertor e o gado inesperado à doença do dia, o podre da noite, a bala fria
à cabeça o arremesso, a neve árdua refracta-se e esvazia

O mundo dá sementes de cólera, vasos dilacerantes no sangue
prende olhos, estanca gritos, encontra rastos, espia

O mundo, o grande estertor que sabe na boca à grande casa de morrer a morte
ou ao sobressalto quando se faz da primavera um só dia

O mundo ergue-se na tábua, na vala funda, na dorida lágrima, na inatingível morte
não há quem espreite um coração inteiro, quem queira um rio de fogo branco
a música mais bela apodrece com a cativa alegria, e são só nós os desencantos
por entre as flores dos anjos que queimam de lume as manhãs
de muitas horas
e por isso se cala na rua quando os reis se levantam e proclamam
amortalhámos Tebas:

lavámos as mãos num poço mais fundo do que os olhos, lavámos o rosto nas águas mais inóspitas das terras ermas onde ainda gorjeia de sorriso uma criança;
parida nesta esquina com o mundo, o nosso mundo de frente e do avesso
O mundo que nos abandonou não se esqueceu da receita e devolveu-nos o preço


José Ribeiro Marto