13 agosto, 2008

ANCORADOS NA LUZ

O corpo, claro, o corpo;
Este meu corpo é que me revela aos outros.
É ele, não há dúvida; toco-lhe apenas
Para comprovar a sua imaterialidade.
Pesa uns quilos ainda, ocupa o seu espaço
Na casa e no mundo.
Tropeçam nele, reparam nele;
Às vezes, há até quem lhe faça uma carícia,
E ele arrulha de felicidade.

A alma, claro, a alma;
Esta minha alma escondida dos outros,
Sinto-a vibrátil sob cada poro da pele;
Vasta como o universo,
Cheia de recantos sombrios,
Vales iluminados,
Carregada de memórias,
Cheiros, sabores e saberes,
Onde ecoa ainda
O grito que eu dei relutante ao nascer,
E o espanto e o encanto de estar vivo
Que me assoma amiúde aos olhos.

A alma e o corpo, isso, os dois:
Um dentro do outro,
Os dois que são um só,
O corpo que apodrece feliz
Dentro da alma,
Diluindo-se nela pouco a pouco.

A alma, isso, a alma outra vez,
Triunfante, definitiva,
Com todas as memórias do que foi,
Com a história do crescer do corpo,
Do amanhecer do amor,
Da emoção, do orgulho de envelhecer
Em sabedoria e ternura,
Para que um dia, ah, um dia,
Possa viver, para sempre, rarefeita, irmã do ar,
Ancorada na luz.



Sento-me no banco
Do pequeno largo –
O vento arredonda
Os meus sobressaltos
E perde-os no ar.
O dia arde ainda na copa das árvores,
Nas asas dos pássaros,
Nos olhos dos velhos
Perdidos no tempo –
Meu corpo é um barco
Ancorado na luz.



Voa, meu corpo,
Na crista do vento,
No bafo do suão
Que arde violento
E varre as planuras
Como um lobo de lume –
Voa, meu corpo,
Ancorado na luz.


Falávamos do tempo –
Tocaste-me ao de leve os cabelos
E foste abrindo clareiras para o vento passar;
Perto, uma mulher cantava em surdina,
Num quintal, encostada a um muro de pedras soltas –
O sol do Alentejo cegava-nos as palavras:
O que íamos dizendo sobre o tempo
Escorria-nos agora dos nossos olhos
Ancorados na luz.




poema de António Simões, Évora, 9 de Julho de 1999.

fotos e arranjo gráfico de Augusto Mota.


(sobre estas fotos ver comentário 1)