12 janeiro, 2009

Dóis-me

Buganvília (Bougainvillea spectabilis) - foto de Augusto Mota
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dóis-me quando soluças um mar vago negro de sussuro
um sol de buganvílias descendo num beiral ou muro
um canto lento piado dos pássaros de companhia
não vem pela luz conhecer as horas cantar o dia

dóis-me na hora em que passa o metropolitano
com gente pendurada nos sacos a caminho das repartições
com um sorriso esquecido ou morto nos bolsos
com um canto de ouro entre os dedos
e uma navalha de linho acesa num jeito de procissões


dóis-me por segundos muitos minutos muitas horas
dóis-me quando murmuras cobras gastos ao tempo ´
e por dentro um lobo uiva lamentos e faminto
estuda mapas corre ventos analisa usurpações

dois-me estás só
és sensível ao privilégio de deuses e senhores
sorris pelos teus direitos que vivem esquecidos
entregas de riso falho uns cuidados de penhores
sabes que um silêncio de morte te ameaça entre os vivos

e o que é vivo é pouco
talvez as pombas da cidade irradiando asas brilho
talvez uma mulher sonolenta e de voz áspera
te assista no cômputo da idade

dóis –me pelo clarão de luz à noite na cidade
pelas sombras dos monumentos pelo eco dos passos de caminho
por um comboio malquisto repetindo percursos
alguém escultando bolsos haveres menores gestos inconclusos

a cidade cresce com a dor que te aquece
sabe-se vento podre rio de lixo combinação de números
galgos sinais de luxo avareza sombria e de porte vazio

dóis-me não conheces as rotas da cidade o seu peso de metal e ferro
as árvores de rios verdes incendiadas de gelo
augurando primaveras e tu vais com o teu sorriso de peixe na água
os teus olhos a coberto de umas velas

o tempo é uma miríade de hieróglifos
pousados no teu rosto indecifrável sem anjos de salvação
sem uma queda de água de uma buganvília florescendo
nas mãos por que é Setembro
um mês de sépia no deserto dos teus cuidado

JOSÉ RIBEIRO MARTO