18 março, 2008

Manuel Madeira

nasceu em Messines, Silves, em 1924. Deslocou-se com a família para Faro e depois para Olhão onde fez estudos secundários. Foi empregado no Comércio e funcionário da Fazenda Pública, tendo sido demitido por motivos políticos. Foi preso e torturado pela PIDE várias vezes. Trabalhou finalmente como técnico da indústria agro-alimentar durante cerca de trinta anos. Colaborou com poesia e ensaio em publicações clandestinas nos anos 40 do século passado e posteriormente em jornais e revistas literárias. Figura na Antologia de Poesia Portuguesa do Pós-Guerra, 1945-1965, Editora Ulisseia. É co-fundador da revista «Sol XXI», tendo colaborado com poesia e ensaio. Reuniu em livro parte da sua poesia, de 1949 a 2004, sob o título «No Encalço do Real Inalcançável», Editorial Minerva, Lisboa 2005. Em 2007 publicou «Um Pouco de Infinito em Toda a Parte», Editora Atelier e em 2008, «Cartas Poéticas entre António Ramos Rosa e Manuel Madeira», Editora Labirinto.
***** ***** *****
Tempo do Poema


O poema é um universo de letras
como o universo é um poema de partículas
surgidas em conjunto com o espaço e o tempo
a partir da matéria que sempre existiu com formas diferentes
atingindo o ponto culminante da grande expansão
de estabilidade assimptótica intuída pelo cérebro que a concebe,
resiste e se adapta às maiores convulsões
e está presente aqui e agora para dizer o que pensa e sente
de olhos fechados tentando reproduzir em palavras
o que ele não vê com os olhos abertos
susceptíveis de criar as maiores ilusões.

Nem sempre o poema começa pelo princípio
como teria acontecido com o universo
ainda que nos custe aceitar o paradoxo,
quando a realidade é que antes de antes
existe pelo menos o infinito, onde tudo, potencialmente se afirma,
que não precisa de palavras para existir,
porque elas só surgiram quando quase tudo existia,
com letras e sílabas à deriva nos neurónios
e fotões e bariões no espaço-tempo a esmo
mesclado de caos e de organização
onde a ordem e a desordem são palavras de ordem
que se revezam de acordo com a dinâmica das coisas
à medida que elas se transformam talvez
num vai-vem indizível de eterno retorno
porque nada nasce de nada e tudo tem origem que pode ser original.

O tempo preexistiu em estado virtual
como o poema existiu antes de existir,
ambos dispersos na massa anónima das probabilidades
nos circuitos invisíveis da matéria plausível
onde os conteúdos casualmente contendem em busca de uma forma
para nela desabrochar germinando o fruto.
Também o poema germinou no âmago do tempo
porque sem ele teria sido um nado-morto, ou não teria existido.
*****
**
A Tesoura Falante

Era de minha mãe. Conheço-a desde que me conheço
e assistiu sem o saber ao despertar das minhas diabruras.
Neste sentido é mística, mas é para todos os efeitos
uma mística metálica. As veias são veios de molibdénio
para tornar inoxidável o que seria
perecível pasto de ferrugem
e os neurónios subsistem para alimentar
o fluxo inesgotável de recordações
no vai-vem contínuo dos acontecimentos
amontoados no cesto da costura.

Fala quase sempre a sós comigo
se lhe falta tecido para deglutir.
Adora ouvir a sua própria voz
mas tem a consciência de não ser autista
e nunca mastiga as palavras que não pode engolir
já que as quer possuídas de pleno significado
de modo a suportarem o princípio da contradição,
única fórmula aplicada de as considerar válidas
e por isso resistentes à poluição do silêncio
que não seja o silêncio pejado de sentido.

É uma velha tesoura que perdeu o brilho superficial
em troca do esplendor invisível que interiorizou,
sensível ao olhar e ao tacto de quem ausculta
o real para além das aparências.
Com ela dialogo quando o sol se apaga
e a luz dela surge ofuscando a lua
reduzida a talhada exausta de melão de inverno.
E ela fala-me longamente então
da sua experiência viva do passado morto,
do alvoroço tímido das mãos de minha mãe
pressionando o eixo, embotando o gume, mastigando o pano
lesto transformado em produto acabado com alguns alinhavos
seguindo à risca o risco traçado
pela anónima geometria das dificuldades
à luz de uma chama de candeia
suspensa sobre a mesa como o sol no zénite.

Hoje, que o sol se apagou
a tesoura só corta as palavras que restam
para acender com elas o poema.