19 março, 2008

Marco Alexandre Rebelo


nasceu em Moçambique em 28-1-1976.

Mestre em Estudos Portugueses – Teoria da Literatura pela Universidade Nova de Lisboa, com a dissertação O Espaço sem Volta: dos Pequenos Poemas em Prosa a Os Passos em Volta, Lisboa, FSCH, 2005. Licenciado em Jornalismo pela Universidade de Coimbra. Autor do livro Nietzsche, Pessoa, Borges: Por trás das máscaras (in)voluntárias do acaso, Lisboa, &etc., 2004.
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Selecção de Marco A Rebelo
O AMOR DE ARTHUR RIMBAUD
O MESTRE DO SILÊNCIO


Na montanha onde moram as estrelas
bosques que existem há mil anos
de cabelos negros como o luar e a brisa da tarde
quando entra branda entre as pétalas das flores
que se inclinam sobre o morto que dorme
e misteriosamente repete:

«Sur l'onde calme et noir où dorment les étoiles
un chant mystérieux tombe des astres d'or»
semi-saído da terra com um olho infinito aberto
morto há um ano ao nascer da lua
morto há um dia ao nascer da rosa
morto há um sonho, morto há um gesto
frente ao sopro das árvores da noite
tocou o seio infante numa primavera
e misteriosamente repete:

«Ó pâle Ophélia belle comme la neige!
Ciel, Amour, Liberté: quel rêve, ô pauvre folle»
transparente sobre a terra mole de lava de estrela
sobre cabelos idênticos aos dos mortos desolados
morto há mil anos repete:

«La blanche Ophélia flotte comme un grand lys»

o morto misteriosamente diz:

«Il y a une horloge qui ne sonne pas»

António Maria Lisboa
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O DISPOSITIVO MALDOROR-POÉSIES


Vejam as condições da vossa vida intelectual tal como são e não subestimem o medo.

São hoje bem raros os especialistas capazes, sem aqui perderem a razão, de fabricar para se fornecerem a si mesmos os livros que têm inveja de ler, as palavras de que têm necessidade.

Mais raros ainda aqueles que, para fazê-lo, se contentam com a pequena ferramenta-mínima: o alfabeto, o Littré em quatro volumes e algum velho tratado de retórica ou discurso de distribuição de prémios.

Mas por mais que possuam outros livros, torna-se indispensável ter o poder de neutralizar o efeito à necessidade.

Não foi acaso que em 1870, altura de uma terrível humilhação francesa, um pássaro de enorme envergadura, espécie de grande morcego melancólico, de condor ou vampiro dos Andes — um grande pássaro membranoso e ventilador —, veio empoleirar-se na rua Vivienne, no bairro da Biblioteca Nacional que ele não pára de sobrevoar desde então, de planar olhando como um abraço ameaçador e tutelar ao mesmo tempo, fazendo as suas voltas ao crepúsculo, com o barulho de uma bateria, no céu sepulcral da burguesia.

Ajuízem os avatares que ameaçam o vosso espírito à imagem daqueles que sofreu a nossa literatura nacional.

É preciso que aquilo lhe chegue, esta cãibra da mandíbula! e, na mesma ocasião, o endireita capaz de a resolver.

Tirem proveito desta lição. Equipem a vossa biblioteca pessoal com o único dispositivo que permite que a vontade afundar-se e voltar a flutuar.

Assim, imaginemos que, a seguir a não sei que leitura, chora no vosso coração como chove na cidade ou que, pelo contrário, se sintam ao mesmo tempo febris e amorfos como se tivessem apanhado muito sol…

Abram Lautéamont! Eis toda a literatura voltando como um guarda-chuva!

Fechem Lautréamont! E tudo, imediatamente, volta ao lugar…

Para desfrutar no domicílio de um conforto intelectual perfeito, adaptem à vossa biblioteca o dispositivo MALDOROR-POÉSIES.

Aprendam e façam com que a vossa família aprenda a forma de se servirem dele.

…É aqui que, por hoje, se ficam os nossos conselhos.

Francis Ponge, “LE DISPOSITIF MALDOROR-POÉSIES”
(Tradução de Marco Alexandre Rebelo)