24 março, 2008

Maria do Sameiro Barroso









nasceu em Braga, em 12 de Maio de 1951. É licenciada em Filologia Germânica e em Medicina e Cirurgia, pela Universidade de Lisboa. Tem os seguintes livros de poesia publicados: O Rubro das Papoilas, Rósea Litania, Mnemósine, Jardins Imperfeitos, Meandros Translúcidos e Amantes da Neblina.
Tem colaborado em antologias, revistas literárias, encontros de poesia, tendo integrado a II Bienal de Poesia de Silves, 2005 e apresentado livros de poesia. A partir de 2002, a sua actividade alargou-se à tradução, ao ensaio e à história da Medicina.
Foi coautora do livro Mozart e os Mistérios Iniciáticos, com José Manuel Anes e Paulo Loução, tendo traduzido o libreto da Flauta Mágica, a partir da edição facsimilada de 1791. Integra, desde 2006, o Conselho Editorial da Editora Labirinto.


Colaborações esporádicas no blogue Palácio das Varandas (clique)


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FÁBULAS, IMPRESSÕES, MEMBRANAS

A água, a flor e o lume, as variações do hipocampo,
a Estela Guedes falando de Herberto Helder.
Estávamos em Silves, a noite era fria, a aragem límpida,
o vento lúcido.
Ao longe, um incêndio.
Nas golfadas de aroma, a noite primitiva e só respirava,
entre a sílica e o açúcar,
num longo canto, onde o odor se inclinava,
em montanhas claras, hialinas.

Nas têmporas, a luz irradiava.
Nas grandes árvores do cérebro, a ânsia era a seiva e a flor,
sobre os muros cálidos, brancos, as glicínias amenas,
e as buganvílias exuberantes.
Nas variações da lua endógena, a terra era o cântico,
o fulgor, o oceano do sangue.
A água era a fonte, onde os leões bebiam a sua sede,
a noite era um violino.
Ao longe, um deserto brilhava, entre âmbar, rolas,
neblinas, canteiros verdes.

Nas galáxias da escuridão, as palavras irrompiam,
longas, como fábulas.
Num copo cheio de música, a poesia era um ancoradouro
branco, na Fábrica do Inglês,
entre artefactos de cortiça e a maquinaria antiga.
No silêncio, coberto de limões repletos, o céu floria.

Entre o hipocampo e a amígdala, o vento era roxo,
a noite fria.
Nas metáforas da seiva, as metáforas da vida,
os hibiscos de lume,
a lua coberta de crateras, órbitas fendidas,
aquedutos brancos.
No cérebro, em pedúnculos de sílabas,
oscilavam membranas cor de pérola.

26-4-2005


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SILVES

Al Mu’tamid traçara-lhe o destino, a rota do Sul,
as cores fortes, a fronte clara, a herança mourisca.
Dois dias depois, uma a uma, guardo todas as suas pétalas,
os seus ramos altos, as suas reminiscências odorosas,
os seus átrios de luz e poesia,
Nos seus rios, correm lendas antigas, desdobradas
em murmúrios ávidos, incendiados junto às laranjeiras
abertas, em suas copas de magia.

Dois dias depois, recordo a sua igreja, o seu castelo,
a sua terra vermelha,
o Foral que lhe concedeu a liberdade.
No seu hálito fulvo e branco, há cálices, redomas
onde a palavra arde e o silêncio urge.
Nas ruas, há relatos, centelhas, clamor, memórias claras,
fruto e seiva que se desprende das árvores
e das libélulas inebriadas, sobre espáduas
de harmonia.
Sobre clepsidras antigas, recordo
as fontes, as gentes, os dias floridos,
sobre candelabros flutuantes.