29 abril, 2008

Democratização da Poesia ou Banalização da Palavra?

A expressão acima é algo equívoca; desde logo porque os dois sintagmas que a integram o são. Assim: tem sentido falar-se de democratização da poesia ou deveria antes falar-se de democratização do acesso à poesia? Se for este o caso, então, deveremos encará-lo como um problema que tem a ver, por um lado com o nível cultural dos potenciais leitores e por outro lado com o compromisso que todo o escritor deve assumir para que o grau de polissemia seja controlado e não desapareça totalmente a objectividade ( que permite alguma comunicação com o leitor ). Se o número de significados se aproximasse de infinito, então, nesse caso, tender-se-ia também para uma entropia máxima com sacrifício da compreensão do texto poético, tender-se-ia, pois, para um discurso completamente aleatório, numa palavra para o caos. ( ver a este propósito A Obra Aberta de Umberto Eco ).
No caso da acessibilidade ligada ao nível cultural dos leitores, o problema é especialmente espinhoso para nós, portugueses, sendo certo que uma parte significativa da nossa população tem dificuldade em descodificar um simples trecho em prosa, quanto mais um texto poético!
Que devem fazer os escritores nessa circunstância? Baixar a qualidade do texto com sacrifício da originalidade a que têm direito ( não esquecer que esse trabalho corresponde ao da investigação científica, que é, por norma, apenas acessível a iniciados )? Estamos perante mais um equívoco. Devemos contribuir todos para que a população se torne mais culta e isso não se faz fazendo maus programas de televisão, ainda que de compreensão imediata, escrever livros de poesia imitando a poesia popular, dar uma total primazia à imagem em detrimento da palavra escrita. O sucesso da imagem televisiva resulta da sua fácil digestão e serve os interesses da demgogia a que os diferentes governos vêm dando guarida sistemática.
Se um livro agrada a toda a gente é razão para desconfiar da sua qualidade, juízo já emitido por vários escritores e que eu subscrevo interiramente, embora admitindo as óbvias excessões que sempre existem ( felizmente).
Quanto à expressão banalização da palavra merece-me alguns comentários. Ou a expressão é para ser tomada à letra e nesse caso tenho a dizer que não há palavras banais, todas são susceptíveis de ser incluídas num poema ( ver Pessoa ) ou a expressão tem carácter metonímico e então o que se pretende referir é a banalização das palavras articuladas, das expressões ( frases ou versos ) usadas no quotidiano mas com que frequentemente nos deparamos em textos pretensamente poéticos. Aí há, obviamente, uma banalização, sim, mas do texto que não da palavra.
Há pouco tempo, Nélida Piñon em entrevista à Rádio Clássica dizia que aos 14 ou 15 anos descobriu verdadeiramente o que fazia a diferença entre um escritor e alguém que escreve não importa o quê, ao escrever, ela própria, a expressão uma ladeira íngreme. Ora isso, qualquer pessoa diz, é uma expressão vulgar, além de possuir um carácter quase pleonástico. Ela percebeu nesse momento que nada tinha acrescentado ao significado da palavra ladeira.
Naturalmente, sou contra tal banalização. O texto poético não é um discurso do quotidiano. É claro que os poetas têm palavras pelas quais têm uma estima especial e que empregam com maior frequência, constituem o seu láxico. Sobre elas diz João Cabral de Melo Neto:
Vivo com certas palavras
-abelhas domésticas
*
Com este arrazoado quero eu dizer que fico sempre desconfiado quando ouço falar de democratização da poesia. Se esta não precisasse de esforço para ser minimamente compreendida, então, obviamente, é por que era de má qualidade. Já o dizia T. S. Elliot deste modo: when I see a play and understand it the first time, then I know it can't be much good. Isto não significa que eu faça a apologia de uma poesia hermética, esotérica. É importante que cada escritor encontre o seu modo de fazer poesia, de tal modo que essa poesia não seja leitura apenas para ele, mas sim para um conjunto de pessoas que foi, ao longo do tempo, educando o seu gosto no contacto com a poesia e no estudo da história da cultura.
Quando se fala de democratização pensa-se sempre em política e bem: um regime democrático opõe-se a um regime autocrático e estas são formas muito diferentes de gerir o poder político.
Mas devemos reconhecer que se escreveu boa poesia em ambos os tipos de regimes ainda que os poetas se tenham batido sempre pela liberdade de expressão do pensamento. A publicação esteve muitas vezes proibida a certas vozes incómodas mas o pensamento não pode ser coarctado senão pela morte.
Lembremo-nos de Dante que teve de fugir de Florença sob a ameaça de pena de morte por ter tomado partido pelos guelfos brancos contra o papa Bonifácio VIII, exilando-se, viajando de umas terras para outras, até ficar sob a protecção de Guido Novello da Polenta na corte de Ravena, cidade onde morre em 13/14 de Setembro de 1321. Lembremo-nos de André Chénier que pagou com a vida o seu amor à liberdade e que ficou imortalizado na ópera homónima de Giordano e dos que fugiram à ditadura nazi emigrando para outros países ( Nelly Sachs, Thomas Mann, etc., etc. ). Essas situações ignominiosas não foram capazes de impedir o gesto criativo para empregar parte de um verso de Sophia de Mello.
E, à guisa de provocação, deixo estas duas anotações: se não tivesse havido a guerra civil espanhola não teríamos o quadro Guernica do catalão Pablo Picasso e se não tivessem ocorrido os fusilamentos de 3 de Maio de 1808 não teríamos o quadro Os fusilados de Goya. Uma coisa justifica a outra?
Em resumo: eu acho que devemos lutar para que todos tenham acesso à cultura e possam beneficiar do prazer que a arte, em geral, e a poesia, em particular, podem dar não esquecendo, todavia, que esse acesso exige trabalho, exige esforço.
Não se é poeta pela graça de nenhum deus. É uma conquista do homem, resulta da sua vontade alicerçada no seu gosto e, naturalmente, nalguma propensão ou talento. Nem todos podem ser poetas como nem todos podem ser pintores ou músicos e não tem sentido falar aqui de falta de democratização.
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*Melo Neto, J.C., Poemas Escolhidos, Portugália Editora, 1963, p. 24
Comunicação de Luís Serrano.