30 abril, 2008

poema poeta poesia

enquanto três tópicos são estes os três lugares que nos convidam a habitar.
primeiro lugar: o espaço interior do poeta, a sua solidão – a sua primeira casa. para que escreva, o poeta precisa de um recolhimento, uma aproximação à paz, de um vazio que é aceite em silêncio. um vazio necessário para a reconstrução do escuro e do mais belo.
a casa do poeta não é uma casa inteiramente vazia. é uma casa com numerosos espaços a habitar. espaços que se vão preenchendo devagar, devagarinho consoante as mulheres que chegam e os objectos que trazem, conforme os que se ausentam e os objectos que esquecem, e há o amor e a morte entre as coisas, o desalinho das mãos que também abraçam. porque a morada do poeta é uma casa de solidão e amor, porque amar é ainda saber-se só, é saber existente uma solidão anterior à sua e saber recebê-la e reconhecê-la vigilante. é grandíssimo o amor do poeta, a sua casa é imensa e tem vários andares; andares construídos de lenha, lenha húmida, de sol, pedra e cigarros mal apagados, de terra e pedaços de vasos nos corredores. há mesas e toalhas de plástico, algum pó na margem dos espelhos. uma casa com muitos andares, frascos sem rótulos nas prateleiras e pela casa há mulheres sentadas, pacientemente, a aumentar os dias aos meses, presilhas de ferro e cartas escritas a lápis dentro de caixas transparentes, rectângulos desenhados no centro das portas e nomes sublinhados a giz nas paredes. todos os dias é construído um novo piso na casa do poeta e há gente que entra e que gosta e que quer ficar lá para sempre e que não quer esquecer. porque o poeta escreve também para não esquecer escrevo para não esquecer, para não esquecer a dimensão da casa, o tempo exacto onde tudo acaba por ser esquecido. o poeta quer dizer a sua solidão, arrisca defendê-la, salvá-la com palavras, comprometendo-se a dizer o que está por detrás delas, recuperar o silêncio que fica na casa depois de as ter tocado. uma presença invisível - o ar todo que entra e se mistura com as divisões da casa, os nomes multiplicados na parede, o abrir, o descobrir das janelas todas, para depois poder fechá-las, tranquilamente.
o poema é a casa que o poeta eleva para as palavras. o poema é o lugar onde as palavras se encontram. algumas conversam entre si, procuram o fim das ruas e vêem os rios do outro lado dos muros. outras conhecem os muros mais altos da cidade e admiram-se de serem as escolhidas para as primeiras linhas de um caderno. o caderno é a possibilidade do poeta se encontrar e também a primeira oportunidade de as palavras não se perderem umas das outras. elas conhecem a comunhão, sabem quando a terra estremece e o instante em que o poeta as chama. requintadas, algumas, não gostam que as evoquem, aparecem de repente, imersas de luz: quase incabíveis no mundo.
o poema é um lugar delicado para habitar e parece que todas as palavras sabem disso: as palavras que apontam incêndios, as que lembram as pedras mais duras, as que esperam a forma mais lisa dos pássaros, todas elas sabem que o poema é um lugar altíssimo, uma reza dita baixinho. o poeta dá-se vida e dá vida. é lhe difícil definir um só nome para cada um dos lugares que encontra, para todas as figuras que o habitam, revive a dimensão de uma centena de barcos e é-lhe frágil a claridade – nasce assim a poesia: um lugar de mar, uma casa sem portas, uma casa de horizonte. um sítio de coragem, porque um poema nunca existe completamente e o poeta sabe isso; as palavras são pequenas bolas de ar, pequenos sopros que moldam o espaço do coração. a poesia não salva, redime-nos da passagem do tempo, cuida do envelhecimento da casa. cuida do pequeno intervalo que existe entre nós e as coisas, da pouca distância que vai das minhas mãos até ao copo deixado em cima desta mesa.

texto lido por Aida Monteiro na III Bienal de Poesia, em Silves.