09 julho, 2008

1.Kiseru No Yume - Sonho de Cachimbo



Yamada Hiroshi san satisfez-me uma das minhas velhas aspirações, a de ter uma gravura de Kitagawa Utamaro, um do expoentes maiores do Ukyio-e. A gravura era de uma mulher jovem, o kimono verde languidamente solto, segurando um espelho que seria de laca preta, iniciando os preparos do dia.

Comprei-lhe a estampa, impressa em washi, papel japonês, e levei-a cuidadosamente comigo a caminho do Ryokan (hospedaria tradicional) onde me tinha alojado, em Kyoto.

No regresso, caminhando sem pressa, e procurando registar tudo o que via, deparou-se- -me uma pequena casa tradicional de madeira escura, igual a muitas outras, que vendia antiguidades.

A casa era estreita e comprida. Ao contrário de outras do género, esta possuía a austeridade de ter poucas coisas. Ao fundo, uma Ô-Yoroi (grande armadura) contemplava sentada, um vale invisível, distante mais no tempo que na geografia. Talvez quem envergara aquela espantosa armadura tivesse estado em Sekigahara, pensei.

O ambiente era sombrio, o mês de Março estava fresco mas nesta velha casa respirava-se uma grande serenidade. A luz era apenas a suficiente para se vislumbrarem os objectos, presenças silenciosas de tempos idos. À minha direita, sobre um armário, repousava uma caixa de laca com gavetas, encimada por uma calote de metal perfurado, a deixar adivinhar que serviria para nela se queimar carvão. A presença próxima de um tabuleiro repleto de cachimbos longilíneos convenceu-me de que a caixa tinha sido de um abastado fumador.

Como por simpática necessidade suscitada pelos outros cachimbos, acendi o meu quando, por detrás de mim uma voz feminina me dizia gentilmente: ohaiogosaimasu. (saudação)

Virei-me e uma senhora de idade, envergando um kimono castanho e preto muito discreto, o obi totalmente negro, tudo em perfeita consonância com as tonalidades do ambiente, sorria-me com um ar de bondade digna, algo que sendo acolhedor não era jovial. Na sua voz sussurante disse-me algo que não entendi no meu superficial conhecimento do japonês. É curioso como as japonesas dizem, ao iniciar uma frase, um ah, como quem se lembra de algo, uma como que tomada de fôlego, de que resulta, no subsequente discurso, uma espécie que acorde inicial, impregnado de uma harmoniosa forma de abordar um assunto novo. Dir-se-ia que essa aspiração significa o primeiro passo de um bailado verbal, com compassos suaves onde se percebe a delicadeza posta nas palavras.

Sumimasen, (desculpe) respondi-lhe como pude, watashi nihon go... ié, (eu de língua japonesa...não) devolvendo à senhora o sorriso. Ela foi dizendo mais qualquer coisa de onde discerni a palavra tabacô enquanto se dirigia para o tabuleiro dos cachimbos, levando a palma da mão direita em direcção ao nariz, como que a aspirar o ar. Percebi que gostara do cheiro do tabaco. Ah, imitei eu, gomen nasai (outra forma de dizer desculpe por incomodar).

Ié, ié, respondeu-me sorrindo. E percebi que poderia continuar a fumar.

Cuidadosamente a mão direita foi percorrendo os cachimbos até pegar num cuja madeira brilhava, escurecida pelo uso. A fornalha tinha um pequeno ornato gravado e o metal estava despolido. Fez menção de mo entregar com as duas mãos mas vendo que tinha as minhas ocupadas uma com um saco onde trazia a gravura e a outra com o cachimbo, indicou-me uma mesa baixa para que os pousasse. Desajeitadamente coloquei o saco na mesa, mas tão incompletamente que a gravura resvalou para o chão limpo.

Ah, fez a senhora quando viu a estampa. Ambos nos baixámos para a apanhar, ela com a mão direita tapando o espanto que a boca revelaria. E ficou a contemplar longa e enigmaticamente aquela estampa, e eu a olhar a senhora do kimono escuro, perdida naquela inexplicavel contemplação.

Caiu subitamente em si, novamente com um ah quase surdo, quase apenas um baque. Virou-se para mim e com uma profunda vénia disse-me gomen nasai e, apontando para a estampa com os olhos, segurou-a cuidadosamente, arrumou-a no saco, levantando-se com um sorriso, os olhos baixos.

Pegando novamente no cachimbo que escolhera, entregou-mo com as duas mãos, dizendo Nihon no yume kiseru . Peguei no cachimbo e depois de o admirar, devolvi-lho. Ela disse que não, e com a palma da mão virada para cima, apontada para mim, repetiu o gesto para que o compreendesse. Entendi que era uma oferta. Ora olhava para o meu cachimbo ora apontava para o cachimbo que me entregara, arrastando meigamente as frases finais, imperceptíveis para mim. Senti-lhe porém a determinação e limitei-me a retribuír a vénia com um domo arigato gosaimashita . Respondeu-me que não, que não era preciso agradecer. Depois dirigiu-se à caixa de laca, abrindo uma gaveta de onde retirou um estojo em esteira antiga e uma bolsa em brocado. Por momentos julguei ver encostado à caixa, um espelho redondo com uma pega, todo em laca preta. Tabacô, disse-me, mostrando a bolsa. Nihon no tabacô.

Aos meus agradecimentos respondeu ié, ié, entremeado de um sorriso bondoso.

Embrulhou-me as ofertas que estranhamente me fizera, com grande perícia, num lenço de uma côr verde jade com padrão de corações e pintas brancas.
(...)


Não resisti à tentação de iniciar a publicação deste belíssimo conto [ ou esta magnífica prosa poética ] do meu multifacetado amigo António Conceição Júnior. Todavia, como o conto é assaz longo, para não perderem o ritmo, aconselho.vos a lerem.no, na íntegra, em Brumas do Kamogawa
Vale a pena ...........!
E, se quiserem conhecer as múltiplas facetas do autor, cliquem em 25 anos de criatividade