28 maio, 2008

Com Dali na esplanada do Majestic - para pôr a conversa em dia

Dali
se o teu bigode fosse só dois tesudos cornos
perdidos na vazante de um nariz fradesco
...............e o teu olhar
que sobreleva pelas vitrinas
arrastasse os nevoeiros
os ócios os pedantes os peixes que devoram raízes e solstícios nos lumes da cidade
(só que o real é isto que tu vês e eu sei dos pesadelos todos sobre os fogos – o real só canta as cicatrizes e sangue de fantasmas)

...............pelas paredes da chuva em Santa Catarina
...............derretem-se os olhos de gelo de um marujo
...............que as marés do Outono abalroaram contra as montras de círios e dos medos em saldo
e há chatos lilases que dançam em pontas o Pássaro de Fogo
sob os olhares inquietos do café Magestic

Lorca
enverga a capa de um toureiro morto
vai driblando a Agustina e seu chá de varizes
enquanto engata o criado crioulo que traz sobre os ombros as crinas
de um miúra perdido na solidão dos curros

Manuel de Oliveira
faz um Anniki Bóbó em câmara lenta
dança com a Agustina um flamenco asmático
acenam ao Camilo que toca castanholas nas grades da Cordoaria

...............(a Amélia dos olhos doces
...............tem órbitas descarnadas
é o que acontece às putas gulosas
que vão à Cantareira
desnudar o assombro)

Dali
retoca o pó-de-arroz e o verniz prós calos
frente aos espelhos cegos
e grita pela mãe que vende desassossego a juros num sótão do Bolhão

Picasso
joga à bisca com o Ricardo Pais e baralha a verdade e o real até ao osso

o Klee
aluga quartos de hora na Ribeira

o Miro
estrela órgãos sexuais para brincar aos deuses

Dali
ergue o pescoço para mijar mais alto

a bica traz o preço
das luvas da Vénus de Milo

.........................há tempo derretido no grito das sarjetas

...............há cavalos alados dançando zarzuelas
...............no empedrado roto da praça da Batalha

Lorca
apanhou o comboio em Campanhã
a las cinco en punto de la tarde
...............(leva a tiracolo o criado crioulo
...............e um par de bandarilhas pró que der e vier
- ainda não sabe que há um fuzil escondido entre os olivais
dos campos de Granada)

neste chão de Setembro
uma girafa em chamas compra veludo ao preço da mais pesada angústia

Buñuel
traz à trela un chien andalou
e um penacho rançoso usado pelo Franco na feira de Valladolid

...............duas virgens pernaltas alçam a perna e acendem
...............um lastro de azinheiras lúbricas na Torre dos Clérigos



desaguam no Douro
um Minotauro asceta
um relógio vomitando guerras e reumático
um burguês em ceroulas com os vícios truncados
e o Primo de Rivera que vem ensinar as técnicas da punheta
aos efebos da Foz

...............num beco da Ribeira Breton troca o manifeste surréaliste
...............por 2 gramas de haxixe e uma puta com musgo nas axilas

Giorgio de Chirico
tem uma água-furtada que a polícia vigia
e vai regando alhos porros e os seios da Gioconda para amansar o tédio

Max Ernest
faz trottoir à noite na Trindade com dois travestis vesgos
sabe que as rugas da lua não dormem nas valetas
e há uma ilógica sombra que aquieta as musas

Eu, Dali
penduro os teus relógios no tempo que nos foge
o Magestic já dorme com a noite nos dedos
e o orvalho cega a fímbria do real
...............amanhã se chover estrumamos a língua com os húmus da véspera
...............deixamos que as palavras se afoguem devagar

DOMINGOS LOBO – Porto, 26.5.08