09 maio, 2008

"Um Monumento de Palavras" - Urbano Tavares Rodrigues

POETA DA PALAVRA VIDA

O que define um grande escritor, o que o torna singular, é a capacidade prospectiva de inscrever no imaginário dos seus contemporâneos, atmosferas de conteúdos metafóricos que os designa, irmana e identifica colectivamente. Urbano Tavares Rodrigues, como Saussure, ao abordar o sistema de signos que orientam as sociedades modernas, rejeitando os estereótipos, sabe ser possível enquadrar a denúncia dos universos conceptuais da burguesia, em valores abrangentes e perenes. Urbano, ao incluir, ao longo da sua já vasta e poliédrica obra, a denúncia do sistema capitalista - fazendo-o através dos mecanismos desconstrutores e críticos do marxismo - na estrutura da intriga, percorrendo as narrativas, com engenhoso processo distanciador, o fundo dos relacionamentos humanos, seus êxtases e declínios, atinge, pela subtil lucidez da sua arte de contar, um claro e contextualizado discurso clássico e universalista.
Urbano, nunca perdeu, ao longo de mais de cinco décadas de escrita, a trajectória interventiva, o olhar sereno e atento ao real, eivado de uma visualidade poética que a sua obra inscreve, na verosimilhança dos sintagmas que ampliam a subjectividade prosódica, na acepção que Todorov definiu em "Poétique de la Prose".
Com uma obra que na ficção atinge, com Os Cadernos Secretos do Prior do Crato, 42 títulos (caso raro na nossa actual literatura), Urbano ainda consegue o prodígio de nos surpreender, de nos manter suspensos da tessitura ínfima com que encena e modela a arquitectura romanesca, presos à essência de uma fala que percorre o nosso mais íntimo estremecimento, nos deslumbra e seduz mesmo quando traça os contornos da farsa, das máscaras e da cupidez, que atravessam muitos dos seus textos.
Quando em 1952 João Gaspar Simões se referiu ao livro A Porta dos Limites, de Urbano Tavares Rodrigues, então um jovem escritor a estrear-se, invadindo de pleno direito um espaço dominado pela inquestionável influência do neo-realismo, fê-lo detectando já, nesse livro inicial, alguns dos premonitórios sinais que fariam o universo central das preocupações estéticas e sociais do autor de Estrada de Morrer.
Embora a análise à novela A Porta dos Limites denuncie, por parte de Gaspar Simões, alguma ligeireza analítica na descodificação dos signos que a influência do existencialismo nela imprimira e dos esboços diegéticos do nouveau roman, tal como foi incapaz de apreender a complexidade metafórica que esse texto já anunciava, não deixou, no entanto, de apontar a esse livro de estreia o "relevo, a nitidez, com pormenor e força, que se reflectiam nos contos e novelas de Urbano Tavares Rodrigues as figuras, os casos, as circunstâncias, as paisagens que a fina superfície do seu espelho interior recolheu.
Com um geral panorama editorial que se aproxima a passos largos do desnorte e do bacoco, com a escrita de supermercado a invadir um território onde deveria existir alguma lisura, justo é salientar a corajosa iniciativa da editora D. Quixote ao propor-se, em dez volumes, publicar a obra ficcional de Urbano Tavares Rodrigues. As Obras Completas, iniciada com a publicação dos seus escritos franceses (A Porta dos Limites, Vida Perigosa e A Noite Roxa), incluirá, no último volume previsto 1 texto ainda inédito mas cuja publicação se anuncia para breve: A Última Colina.
As short stories de A Porta dos Limites, atravessam as peculiares premissas do universo ficcional de Urbano. Adivinhamos-lhe já o verbo rasante, a clareza discursiva, os ritmos, o instinto e a capacidade efabulatória, uma durée bergsoniana, na exposição do psíquico e do social, que atravessará toda a sua obra posterior. Há nestas estórias breves uma técnica discursiva próxima da clivagem morfo-sintáctica que encontramos, por exemplo, em Michel Butor.
Urbano analisa esse esquivo "céu da burguesia", de que fala Barthes, para nos revelar o lodo da estruturante ideológica que o sustém, vocacionada para a alienação e para a usura. Concomitantemente, o autor vai definindo os mecanismos que criam as dependências e vão subvertendo o tecido social das sociedades contemporâneas, sem panegíricos morais nem redundâncias espúrias. Urbano caminha, com alguns dos seus personagens, "de mãos dadas com o perigo", como escreveu Sophia, inscrevendo texto a texto, com a lâmina na boca, a coerência de um percurso, a afirmação sem mácula de um ideário generoso e solidário: dialéctico e brechtiano apelo à razão e à justiça. Os três títulos iniciais deste singular percurso enunciam já a obra maior, esse espólio canonizador que se concretiza com Bastardos do Sol, Imitação da Felicidade, A Vaga de Calor e Nunca Diremos Quem Sois.
Os três primeiros volumes de uma obra que se estende pela segunda metade do século XX e entra pujante de criatividade e inventiva, com o mesmo fulgor iniciático, pelos primeiros anos deste século, detectamos já, como bem o assinalou Eugénio Lisboa no prefácio que acompanha o 1º. Volume das Obras Completas, "uma ficção de cariz realista, mas de um realismo singular, rico, complexo, às vezes ameaçador, que intersecta o mítico, o simbólico, o metafórico, e não ilude os aspectos mais violentamente sórdidos da condição humana."
Incluído na novela Escombros que abre Noite Roxa, um poema de Rilke transporta o sensível, o lírico e o subtil erudito que subjaz a obra ficcional de Urbano:

Tudo será de novo grande e majestoso,
as terras serão simples e as águas murmurantes,
pequenas as barreiras e as árvores gigantes;
múltiplo e forte, viverá nos vales
um povo de pastores e camponeses.
E não mais as igrejas guardarão
Deus Nosso Senhor como um fugitivo,
chorando como um ser ferido à traição.
E aos desconhecidos que baterem às portas
abrir-se-ão casas acolhedoras,
e todos nós e os nossos actos respiraremos a oferenda.

Encontramos este olhar atento e crítico, contido e rememorativo, com laivos de deslumbre, em alguns dos poemas que Urbano escreveu para Rostos da Índia, obra por onde o autor espraia essa entrega fugaz e clamorosa dos fulgores do olhar, inscrevendo com subtileza as sensações que a paisagem, as gentes e a vida nele denunciam: Urbano é aqui, desassombradamente, o poeta dos quotidianos sofridos, o poeta solidário a quem a vida, o seu lado injusto, sórdido e cinzento, profundamente dói.
Há, paradoxalmente, no desencanto mordaz (tínhamos um país sombrio e de tempo suspenso) que atravessa algumas novelas de Vida Perigosa e A Noite Roxa, um substantivo optimismo, uma certeza chã no património moral da humanidade; a busca de um justo sentido para a vida.
Pela pele e osso destes textos anda a nossa história recente e muito do nosso imaginário colectivo; na serena lucidez da fala que diz os dias amargos, desoculta os signos; nos íntimos rumores das paisagens que nos habitam e indicam os caminhos matriciais da nossa luta e identidade. O autor dá-se inteiro, arrisca a pele, por isso a sua escrita é respirável, fecunda, ao rés da vida, prenhe de angústias nossas, das nossas mais substantivas perplexidades, a construir-se em permanente labor sobre os apetrechos do real, da memória e do vivido.
A escrita de Urbano Tavares Rodrigues patente nestes três primeiros títulos é, assim, espelho poliédrico que nos reflecte, reflectindo igualmente as paisagens e as vivências que interiormente recolheu, de Paris a Florença, de Lisboa à Praia das Maçãs, de Marselha, à Índia, com paragem demorada pelas planuras dos afectos do seu berço alentejano, constituindo um monumento de palavras, para citar um belo e profético verso de David Mourão-Ferreira, que perante a espessura plural desta escrita, que percorre as texturas territoriais do poético, ganha pleno sentido. Como referiu José Manuel Mendes, a obra de Urbano, que ao longo de meio século se afirma, na sua variedade temática, genealógica e formal, é um momento peculiar da literatura portuguesa.

DENÚCIA E ABJECÇÃO EM "NUNCA DIREMOS QUEM SOIS" E "O ETERNO EFÉMERO"

Após o fulgor inicial a escrita de Urbano sofreu um natural despojamento formal, outra capacidade expressiva, uma fundura lexical que derivam do fascínio que o autor sempre teve pelas palavras e que atravessa a sua escrita de uma capacidade de renovação contínua, impregnada de rarefacção lírica transversal, de tocante sensualidade, imbuída desse poder envolve e rítmico das palavras, que só encontra referentes em alguns poemas de Eugénio de Andrade ou de Mourão-Ferreira. Nenhum dos nossos escritores contemporâneos escreve o corpo feminino, partindo deslumbrado como um adolescente em busca das suas mais secretas vibrações, com desenvoltura e sensibilidade, como Urbano o faz. Mesmo quando narra o sórdido, como acontece quando Mayer-Ferreira, personagem central de Nunca Diremos Quem Sois, macula o corpo de Liriana, o autor permanece fascinado por esse corpo em processo de devassa, olhando-o com subtil arrebatamento, descrevendo-o belo e sedutor mesmo quando ultrajado. Ou seja, ao contrário de Mayer-Ferreira que entende a mulher como efemina, apenas objecto submisso do prazer, Urbano ama as mulheres e porque as ama extasia-se perante a beleza de Liriana e de Carla, humanizando-as. Raramente a exaltação do corpo feminino foi tão apaixonadamente assumida, tão sensitiva e transparente, como nos textos de Urbano, exibindo um corpus discursivo onde coabitam a plasticidade serena de uma Vénus de Giorgione com a exuberância dos nus de Matisse.
Se o seu livro de estreia já inscrevia os paradigmas de uma obra que se ampliaria e tornaria respeitada e influente, Nunca Diremos Quem Sois, constitui-se síntese feliz dessa obra, inscrevendo as cambiantes matriciais que percorrem a sua ficção. Uma escrita mais plana, de uma certeira crueldade, sem contemplações nem maniqueísmos, a um tempo envolvente e dúctil, a ungir-se sóbria de processos sincréticos, de uma causticidade inesperada, um onirismo de desenho subtil a servir a análise crítica de uma realidade sinistra e abjecta, as mãos a penetrarem, desprotegidas, a lama dos dias. Talvez de forma mais clara do que em títulos próximos deste Nunca Diremos, Urbano se sinta, pela avassaladora urgência da denúncia dos constrangimentos que informam os processos sociais, um autor criticamente comprometido com o pulsar do seu tempo, entendendo a premência da solidariedade com as lutas de quantos se vêem acossados pelas complexas derivas que o habitam e expresse o estupor com uma mordacidade só raramente detectável em textos anteriores.
Nunca Diremos Quem Sois é uma parábola do nosso tempo. Das inquietudes, dos medos, das incertezas, mas igualmente dos ténues sinais que vão fragmentando a esperança pelas esquinas deste nosso conturbado mundo. Se este romance nos fala de um universo concentracionário, espaço-limite de uma cidadela murada e vigiada, uma estância de desbragado luxo, num Algarve quase inacessível, onde passam férias os ricos e poderosos, tal não será impeditivo que os excluídos de todas as Alvuras da terra, os feios, porcos e maus que enxameiam os monturos e cercam as fortalezas milionárias, lhe tomem as ameias e lhe corroam os alicerces. Já Camus nos alertara para a impossibilidade da fuga: a realidade, em sua permanente transmutação, é sempre mais poderosa do que os muros que supostamente protegem todos quantos dela se pretendam isolar.
Em A Peste, de Camus, o padre Paneloux evoca o bispo Belzunce durante a peste de Marselha. Lembra que o bispo se encerrou na sua casa, que mandou murar. Mas o povo cercou-lha de cadáveres para o infectar e até lhe atiraram corpos por cima dos muros, para o fazer morrer com mais certeza. Assim o bispo, (...) tinha julgado isolar-se do mundo da morte e os mortos caíam-lhe do céu sobre a cabeça. (1)
O Algarve que este romance denuncia, deixou de ser o Algarve rural, o branco do casario e das amendoeiras em flor com a moldura do vermelho da terra fossilizada das arribas, com um mar sereno e azul ao fundo, que Urbano desvendara em percurso sensitivo e cúmplice pela obra de Manuel Teixeira Gomes.
A Cidadela de Alvura, é o istmo murado de um paraíso algarvio a perder-se entre o mar, a usura e uma desolada paisagem de cimento, microcosmos de um capitalismo que exorbita e onde tudo cabe: o medo e o prazer, o luxo e o desbragamento, a abjecção e os pesadelos - dos traficantes de droga aos especuladores bolsistas; das máfias de leste aos broncos e violentos milionários americanos, dos sabujos absolutos aos oportunistas que espreitam o cadinho de céu que lhes permita alcançar o patamar dos eleitos mesmo que para tanto tenham de vender a alma, o corpo e os farrapos de uma dissoluta dignidade, sabendo que a dignidade não é, em si, valor mensurável. Alvura é, assim, prolífera exibição do caos.
É neste espaço-limite, nesta atmosfera de degenerescência, de dissolução de valores tão cara a Urbano, nesta antecâmara de todos os sobressaltos civilizacionais contemporâneos, que Liriana irá, por 36 horas, deixar que o seu corpo seja devassado pelo frio e calculista Mayer-Ferreira, caricatura do lado mais sórdido da selva neoliberal; que Artur permite e promove o ultraje supremo por um prato de lentilhas; que Carla se deixará arrastar de humilhação em humilhação tentando em desespero suspender, num incerto futuro, refém da miríade de uma boutique de luxo que lhe permita ascender ao mundo virtual que lhe acenam as revistas que não prestam, como dizia o Almada; onde os títeres menores se pavoneiam, como a Condessa Margarida de Lorena, exibindo o tédio, a angústia e a decadência pelas estâncias da fama e da fortuna; e as personagens que Urbano trata com inquestionável simpatia: o padre Benito, paradoxalmente a personagem mais sedutora deste romance, lúcido na sua equidistante relação com deus, perdido nos labirintos ambíguos do desejo ambivalente, contudo honesto no assumir os apelos da carne, que é fraca como sabemos, e Gonçalo, o empregado de hotel, apegado às suas convicções adolescentes, um marxista experimentando as angústias de um universo de onde as referencias físico/ideológicas que o sustentavam caíram com o muro de Berlim, vivendo no centro do caos e da opulência, no covil do inimigo, mas sabendo, lucidamente, que Os miseráveis da terra já não podem suplicar: ninguém os ouve. Terão de conquistar pela força o direito a serem homens. (2)
As personagens não existem fora da linguagem, e esta não será alheia à ideologia que a suporta, e de alguns dos estereótipos que Urbano caracteriza com profunda acuidade. As personagens de Nunca Diremos Quem Sois agem e assumem o seu hibridismo enquanto criação literária que tem funções determinadas e determinantes no evoluir da narrativa. São seres de papel, como designou José Martins Garcia, mas ultrapassando pela dinâmica da metáfora política essa redutora condição. As personagens agem servindo uma ideia geral: a da renegação do caos e dos perigos do neoliberalismo - toda a narrativa, lucidamente, se organiza em torno dessa denúncia central. Assim, a caracterização de algumas personagens de Nunca Diremos Quem Sois evolui do estereótipo até à densidade psicológica, cumulativamente com a estrutura evolutiva na consolidação orgânica que determina a narrativa. É assim que em Gonçalo se detecta, a partir de um discurso que balança entre a dúvida, a angústia sartreana e uma visão dialéctica e crítica do real, o autodiegético desta fala - ou seja, através de Gonçalo, Urbano projecta-se na ficção enquanto autor que politicamente se pensa e procura agir utilizando os intrínsecos mecanismos ficcionais. O autor esconde-se e revela-se através dos seus personagens, como acontecia, embora de forma mais impressiva, em As Máscaras Finais, disseminando-se em cúmulo diegético ao longo das ficções que constrói num permanente jogo de cabra cega. O realismo poético de Urbano, credibiliza e permite esta explanação transfigurada pelas máscaras e sua contínua revelação.
Nunca Diremos Quem Sois, consolida a viragem na obra de Urbano Tavares Rodrigues, que A Vaga de Calor e Filipa Nesse Dia já anunciavam. Nele o autor entreabre ao fantástico, com os pesadelos povoados de misticismos, sapos gigantes que esventram os super-protegidos veraneantes de Alvura; ao policial, com crimes, roubos de jóias, estranhos incêndios - ameaça avançar pelo óbvio, tecer o fio mais elementar da efabulação, mas trai-nos as expectativas e segue por caminhos mais fecundos tolhendo os nossos mais incontroláveis ímpetos voyeristas, recomeçando a narrativa como se a areia lançada à engrenagem ficcional não perturbasse o seu natural percurso.
Os assassínios em série aparecem já em O Supremo Interdito, o seu livro anterior, no qual o serial killer utiliza o mesmo processo de esventramento das vítimas. Só que em Nunca Diremos Quem Sois, Urbano apenas enuncia essas mortes, que surgem como elementos perturbadores, ferindo a aparente inexpugnabilidade de Alvura, espalhando o medo e a desordem junto de um punhado de eleitos que se julgam inatingíveis e imunes por detrás dos muros da Cidadela. São os mitos e os medos do nosso tempo a desabarem fantasmagóricos sobre a face mais desumana dos pilares (aqui reduzidos à premência, ao osso dos estereótipos) do neoliberalismo. Há perigos que espreitam os paraísos do outro lado dos muros - tal como os cadáveres que o povo de Marselha atirou sobre as muralhas do bispo Belzunce, ou os garotos negros e famintos, transpondo o arame farpado para dilacerarem, na voragem da fome, o corpo branco do rico e belo Sebastian de Bruscamente No Verão Passado, de Tennessee Williams. Os pobres já deixaram de ter medo e estão cansados de tanta submissão e ultraje, até porque, como descobre Artur na incursão que faz ao monturo que cerca a Cidadela: o deus da misericórdia que consolava os avós destes homens morreu de vez. (3) E é esse desamparo, a descoberta do homem só perante os seus medos e fantasmas existenciais, desapossado de transcendência religiosa, que conduzirá à inevitável revolta que abrirá novos rumos de justiça e de esperança. Nietzsche revisto e actualizado sob a paleta crítica do marxismo.
Multiplicando os efeitos do real, Urbano fala-nos neste romance da degenerescência que tomou de assalto este nosso tempo, das existências que circundam a densidade do humano, que não se consubstancia num determinismo à Laplace, do caos que se inculca nas relações económicas, denunciando o lado mais abjecto da globalização capitalista, não apenas nas perversões especulativas, mas enquanto gerador de seres hediondos, sevandijas, manipuladores de almas e de corpos; Faustos hodiernos, protagonistas de uma absurda e dissoluta regressão civilizacional que o capitalismo, em seu estágio actual, tende a representar. Nunca Diremos Quem Sois, encena, de forma poderosa e arrebatada, o lado mais obscuro e perturbador dessa nova barbárie a instalar-se, indolor, nos fundamentos comportamentais da modernidade.
Urbano Tavares Rodrigues é um exímio contador de estórias, um autor em que o gozo pelo narrar, pela efabulação é evidente e tocante. Daí a sua escrita ser torrencial, ágil, poderosa de ressonâncias semânticas, vibrátil e inquestionavelmente do território do poético, espaço onde a vida age como afirmação e identidade colectiva. Se a inscrevemos nos alvores do nouveau roman, se nessa referência iniciática radicou a vitalidade dos seus pressupostos orgânicos, há muito que esta escrita se emancipou, ganhou estatuto, matricialidade, dos temas e objectos que percorrem o seu corpus e a tornam única, indissociável do seu autor, sabendo nós, com Herberto Hélder, que o autor reside no estilo - que esta fala exibe imperecível impressão digital. Que esse verbo é, por vezes, excessivo, todos o sabemos, mas a literatura ou se faz sem rede, com a coragem da inventiva permanente, da experiência vertida febril em cada página, sobre o risco, ou se transforma num produto híbrido, inócuo, de laboratório e feito para durar o tempo breve das modas de passagem. A literatura ou é um salto sem corda sobre um vale de abutres ou dorme no sofá a morte antecipada.
Com Urbano, e outros autores seus contemporâneos como Abelaira, Cardoso Pires, Carlos de Oliveira, David Mourão-Ferreira, Natália Correia, habituamo-nos a repensar o país, a sabê-lo possível de esperança, com outras coordenadas que não a estreiteza lúgubre das discursatas salazarentas, o cinzento dos dias vigiados, a fome nos campos do Alentejo, o destino de uma guerra em África ou o exílio forçado em terras de França; perscrutámos o outro lado do espelho, aprendemos, sobretudo, a descodificar os mecanismos do cerco e a resistir: a estabelecer, através do olhar atento do escritor, uma relação existencial, no sentido sartreano, com o mundo, com os afectos e com a literatura.
Sem a torrente ficcional de Urbano, que atravessa, sem cedências, o mais obscuro e persecutório período do fascismo luso, a nossa capacidade de resistir (e sobretudo, de compreender, porque ninguém resiste ao absurdo se lhe não entender os mecanismos) estaria, certamente, mais fragilizada e sem os apetrechos necessários para a permanência nas trincheiras - mesmo que essas trincheiras tenham sido urdidas com a frágil e volátil argamassa dos sonhos, das utopias e das palavras sussurradas à mesa dos cafés.
Hoje, 34 anos volvidos sobre a madrugada que sonhámos, quando aparentemente somos um país europeu, embora pouco entusiasmados com a evidência dos nossos limites geográficos e sentindo no corpo os lanhos de sistemática subalternização cultural (e a Europa aceita-nos como um imponderável, como tia velha e gaiteira que é preciso manter a recato, em redil vigiado, não vá dar-lhe outra vez na tonta das farras revolucionárias e espalhar a peste e o desassossego pelas suas já desarrumadas noites) os senhores que se vão revezando nas cadeiras do poder, têm vindo meticulosa e paulatinamente a criar novas formas de cerco e de opressão, indolores é certo e, por enquanto, apenas sugeridas, mas já evidentes em alguns preocupantes sinais, muito mais eficazes do que as usadas pelos aprendizes de feiticeiro seus antepassados. As novas tecnologias, se servem para libertar o homem, para lhe facilitar as tarefas quotidianas, para o ligar ao mundo, servem, igualmente, para o vigiar, para o controlar, para o submeter. As novas regras, a nova sujeição planetária, está ao alcance de uma simples ligação à Internet. Esse novo e pouco admirável mundo, que Orewell já adivinhava, está agora disponível e à mão de todos os tiranos, tiranetes e sucedâneos, estejam eles no Pentágono, em Bruxelas, ou nos alcatifados bunkers modernos da banca e das multinacionais.
É deste universo subterrâneo, deste húmus, desta tentacular estratégia de opressão, (qual cibernético e global ovo de serpente, despojado da subtileza metafórica bergmaniana) que Urbano Tavares Rodrigues nos fala, desde Deriva, passando por esse grito de revolta e indignação, certeiro e corajoso de denúncia que é God Bless América?, pungente denúncia que o sarcasmo do título amplia e clarifica.
Urbano não é apenas um escultor da língua. O seu verbo, se estua ao rés da fala percepcionável da burguesia e da intelectualidade citadina, ou na dolência redonda e cantável do seu Alentejo natal, transmuda a palavra para os recônditos universos do belo e do poético criando a essencialidade dos sintagmas que o percorre. É, igualmente, um descritor do corpo feminino, da sedução, do amor e dos afectos, dos encontros e desencontros dos amantes. No romance O Eterno Efémero, Urbano atinge a plenitude dessa escrita; o verbo maduro, impressivo, penetrando a essência da língua - uma identidade rara e sem mácula a construir-se na mais sedutora arte de urdir as palavras.
O erotismo, segundo George Bataille, é tudo quanto na consciência dos homens os leva a pôr o seu ser e o mundo em questão: logo, o libertino tende à subversão, a questionar os dogmas que condicionam a sua relação com o corpo e pretendem limitar o pleno exercício da sua sexualidade. Assim, o libertino atentará, no limite, contra a própria estrutura política e moral das sociedades burguesas.
O libertino, pelo simples facto de o ser, encerra em si a capacidade rara de poder ajudar o homem comum a compreender-se melhor, a entender os mecanismos que amiúde o conduzem ao desespero e ao temor sexuais: ajuda-o a libertar-se dos seus fantasmas e medos ocultos, a realizar-se com o Outro, em função do Outro, a abrir-se, a expor-se - liberdade e auto-punição que só a prática sexual permite e amplia - daí o perigo.
O Eterno Efémero é um policial alheio aos códigos do género. O próprio inspector confessa que "afinal se preocupa menos em descobrir quem matou" do que em compreender psicologicamente as quatro mulheres que se encontram sob suspeita. As suas introspecções funcionam como espelho rememorativo do leitor: somos, assim, convocados a um permanente "pôr em causa" à medida que o inquérito/interrogatório se nos vai revelando - estamos no sofá do psiquiatra, frente ao nosso espelho.
O Eterno Efémero organiza-se em torno de um crime: a morte de um libertino dos nossos dias. Um libertino que utiliza a Internet para estabelecer os seus encontros, as suas cumplicidades, o seu domínio. Este texto de Urbano, é um longo interrogatório, durante o qual o inspector Moura Prata vai descobrindo/revelando as personalidades e as motivações das quatro mulheres que amaram e se relacionaram sexualmente com Miguel Ruiz Fernandes e com o qual partilharam excessos, experiências, descidas aos infernos. Os seus depoimentos definem o perfil de Miguel, os seus gostos sexuais, a luxúria, os rituais de sedução. Há algo de perturbador nesta personalidade que nos é revelada: trata-se de um sevandija, uma nova estirpe de opressão que por dentro, a nível dos comportamentos dissolutos e da sedução que os seus protagonistas exercem uns sobre os outros (o sexo é uma forma de poder), vai corroendo, corrompendo os frágeis linimentos sociais que sustentam as democracias ocidentais. Miguel Ruiz é, assim, um personagem que o autor, com detectável mordacidade, vai construindo/desconstruindo ao longo do romance, numa estratégia de jogo cúmplice com o leitor, jogo que apenas se desfaz (?) com a revelação do seu auto-retrato, que o computador, máquina de inscrever todas as ficções e as verdades indizíveis, registou em sua larga e disponível memória virtual.
Quem era afinal Miguel Ruiz? Um utilizador de sofismas, um provocador, um frio e metódico estratega da submissão e do ultraje, um libertino hedonista no sentido assumido por Roger Vailland ?
Há, na obra de Urbano, uma matriz circular: o corpo, o social, o declinar das paixões, os afectos. Não existe, na nossa actual literatura, outra fala assim sagaz, mas sempre modulada, sensitiva e sedutora, capaz de nos dizer o delírio dos corpos num lírico que extrai das palavras o suco dos prodígios, e a impor, sem receios, a mais intransigente denúncia. Urbano é um mestre do erotismo, a inscrever, numa língua pouco moldável à sensualidade, a poética dos corpos, os arrebatamentos, as paixões loucas; mestre desse sussurro subterrâneo e visceral que vai destruindo/ diluindo as relações dos amantes até ao definhamento, como se a morte fosse o destino iniludível, não no sentido moral e aristotélico da tragédia, mas como corolário lógico dos excessos libertinos, como se os amantes soubessem, antecipadamente, que não há retorno desse chão de lava.
Há neste contar como que um retraimento, um imenso pudor mais do que despojamento - a tragédia (como neste O Eterno Efémero) a existir, estrangula os gritos, derrama-se por dentro. A escrita de Urbano radica num profundo conhecimento do real, das gentes, das ruas, dos lugares - do viver quotidiano de uma burguesia que chegou ao limite, que desce à abjecção, percorrendo confusa e perigosamente os labirintos da sua perplexidade. O autor dá-nos a ver, sem a ganga dos moralismos politicamente correctos, a angústia de uma civilização erigida pelo dinheiro e por excessos de representação - é o vazio existencial a tocar o fundo; uma classe que deixou de sonhar as utopias e tem o sexo como vertigem, fronteira última, e perversa, do humano. Uma tribo a esgotar-se nos delírios do corpo, a não conseguir encontrar os trilhos de um regresso, sem mácula, aos referentes míticos e morais, de assumpção judaico/cristã, que a edifica. As máquinas, por mais sofisticadas, não são deuses e o homem estará irremediavelmente condenado à solidão - eis a suprema angústia do nosso tempo.
Como Sade em Os Cento e Vinte Dias de Sodoma, Urbano desenvolve em O Eterno Efémero os fundos apelos do Eros e da volúpia primordial e sabe, como Bataille, que "não existe proibição que não possa ser transgredida" - os frémitos da paixão são momentos únicos e irrepetíveis a esgotar até ao sufoco, quiçá, até à morte. Vivê-los e senti-los, nessa irracional plenitude suicidária, no descascar da pele até ao osso, não merece punição.
A grande literatura tenta a ambição suprema de organizar o caos, mesmo quando, por vocação suicidária, lhe introduz os substantivos mecanismos da subversão: daí Urbano ter passado pela crítica teatral, nessa tentativa vã de manipular as sombras ou de eternizar o efémero.
Embora alguns dos seus textos enfermem do "excessivo literário", como denota Luís Carmelo, esse excesso é sempre de um lírico puríssimo a invadir a prosa, tomando-a por dentro, em seu lavrado chão, tornando-a luminosa, eivada de cambiantes sonoridades metafóricas como é perceptível na novela "Os Cadernos Secretos do Prior do Crato", que Urbano escreveu com nítido prazer cumplicitário, como quem parte à descoberta de um herói com o qual comunga afectos e referências - o sentido de "pátria", p. ex..
Neste texto breve, a língua do autor de Uma Pedrada no Charco deixa-se seduzir pelo poético, invadindo a prosa de um nítido fulgor, de um lírico descomplexadamente excessivo: Amina, mais nua do que a água sob o luar. Amina, como é negro o teu cabelo, onde a luz faz ninho. E, noutra passagem: As mãos que mo estendem são trigueiras e são rudes, mas a rapariga é toda ritmo e traz uma ave de seda amarrada ao pescoço. Mesmo ao narrar a fuga e o desastre, Urbano não deixa de insinuar o poético: Até o sol envelhecera com a evidência da nossa derrota. Mas é no terreno da descrição erótica que esta escrita ganha asas e se excede sem rebuços: Briana Pereira, tão bela e opulenta de carnes. Um verdadeiro manjar erótico.
Urbano afasta-se do neo-realismo (a que esteticamente nunca pertenceu), pela negação da positividade heróica, pela abjecção que define os seus personagens tentaculares, pelo experimentalismo formal e pela ausência de um sentido moral para a acção. O literário, em Urbano, sobreleva o factual geracional, o sentido de pertença a um modo de dizer e de pensar o real, a um universo onde os heróis são propriedade e substância da ideologia. Os seus heróis são frágeis, líricos, remotos ou exilados: Prior do Crato, Manuel Teixeira Gomes; e a heroicidade, a existir, só a espaços brevíssimos percorre o âmago da sua escrita. Daí "Os Cadernos Secretos do Prior do Crato" estar pejado de reflexões meta narrativas, num exercício claro de experimentação de signos que se inscreve na modernidade, como de resto a define Óscar Lopes: "A ficção contemporânea (…) está a seguir os mesmos trilhos da semântica formal linguística, que já deixou para trás a lógica da asserção simples temporalizada indiciada a uma multiplicidade de atitudes proporcionais".
Urbano Tavares Rodrigues é autor de uma extensa galeria de personagens, incontornáveis na história da literatura portuguesa contemporânea. Esse legado, que preenche grande parte dos nossos imaginários, foi concebido com uma azáfama de escriba sem cansaço ao longo de mais de 50 anos. Um espelho que nos reflecte sem embaciamentos detectáveis como por certo João Gaspar Simões, ao analisar o primeiro texto do então jovem autor, supôs, demiurgo, que acontecesse.
Uma obra que parte da vida, na sua mais premente fruição, mas conhecendo-lhe o precário, a lava e a abjecção, percorrendo seus lanhos, medos, êxtases, revoltas, para desconstruir o real e o inscrever nas urgências de uma escrita que não se alheia, que toma partido, que se assume instrumento da nossa consciência colectiva. Igualmente o amor, o sexo, o corpo e o desejo, caminham nestas páginas num fulgor de excessos e deslumbramento. Urbano é um poeta inscrevendo os signos da vida em sagaz e rememorativo cortejo lírico.

Bibliografia: de Urbano Tavares Rodrigues - A Porta dos Limites, Vida Perigosa, A Noite Roxa, Nunca Diremos Quem Sois, O Eterno Efémero, Rostos da Índia, Os Cadernos Secretos do Prior do Crato
- Óscar Lopes - Cifras do Tempo (ed. Caminho)
- 120 Dias de Sodoma - Marquês de Sade - Antígona
- O Pénis e a Desmoralização do Ocidente - Jean-Paul Aron e Roger Kempf - Vega
- Roland Barthes - Mitologias
- Camus - A Peste (Livros do Brasil)
- Todorov - Poétique de La Prose

DOMINGOS LOBO