12 maio, 2008

POR QUE MOTIVO CONTINUAM OS HOMENS A ESCREVER POESIA?

COMUNICAÇÃO APRESENTADA POR GRAÇA MAGALHÃES NA III BIENAL DE SILVES



Eu tenho a felicidade de trabalhar com a poesia todos os dias, – não a poesia convencional, entenda-se – e de absorvê-la na pele, nos olhos, nos gestos, nos desenhos dos meus pequenos alunos, a quem, todos os dias, conto histórias. E também hoje, e porque desde sempre me contaram histórias, gostaria, a propósito do tema sobre o qual me propuseram esta reflexão, de começar por contar-vos uma pequena história…

…quando eu era pequena adorava o circo e aquilo que mais gostava eram os animais. Cativava-me especialmente o elefante, talvez por eu ser tão pequena e ele tão grande, tão poderoso. Durante o espectáculo, esta criatura dava mostras de ter um peso e um tamanho e força descomunais...
Mas depois da sua actuação ficava sempre atado a uma pequena estaca cravada no solo, com uma corrente a agrilhoar-lhe uma das patas. E a mim, fazia-me espécie pensar que um animal tão poderoso e com tanta força não tentasse libertar-se da estaca e fugir. Durante muito tempo pensei nisto e procurei respostas. Uma vez disseram-me: o elefante não foge porque está amestrado. Mas eu pensei:
-Bom, mas se está amestrado, porque é que o acorrentam?
Não me lembro de ter tido uma resposta coerente para esta questão e acabei por esquecer este mistério com o passar do tempo. Há alguns anos descobri que, felizmente, alguém tinha descoberto a resposta para esta questão, que era:
- O elefante do circo não foge porque esteve atado a uma estaca desde que era muito, muito pequeno.
Fechem os olhos e imaginem um elefante recém-nascido preso à estaca. Tenho a certeza que nesta altura o elefantezinho puxou, esperneou e suou para se libertar e apesar dos seus esforços, durante muito tempo, nunca conseguiu libertar-se. Até que um dia terrível para a sua história, o animal aceitou a sua impotência e resignou-se com o seu destino. O elefante poderoso e enorme que vemos no circo não foge, porque, coitado, está convencido que não é capaz de o fazer. Tem gravado na memória a impotência que sentiu, pouco depois de nascer. E o pior é que nunca mais tornou a questionar seriamente essa recordação…jamais tentou pôr novamente à prova a sua força…
Tudo isto me faz pensar que quando somos conformados a uma determinada realidade e somos muito pequenos, deixamos de a questionar e transformamo-nos em “pequenos” grandes elefantes. E são apenas os que conseguem romper estas correntes aqueles que conseguem exprimir-se de forma diferente, eu diria, em poesia… nas suas várias dimensões. Somos lidos por uma minoria e constituímos uma minoria que fala uns para os outros, uma minoria incompreendida por grandes elefantes supostamente poderosos, que nunca se libertaram do que é convencional. Mas não uma minoria de homens ou mulheres, aliás, entendo, em face ao tema desta comunicação, que esta não é uma questão de género, para mim, e, a acreditar nela, defendo que os homens continuam a escrever poesia provavelmente pelos mesmos motivos que as mulheres o fazem:

Porque escrever é uma viagem, uma busca, uma espécie de comboio-fantasma em que embarcamos e que nos permite ler as árvores, as pedras, as estrelas e os olhos dos outros.

Porque escrever é como seduzir, é perder e encontrar, é sentir aquele friozinho, é meditar a ternura e o abandono, é subtilmente, reencontrar a subtileza, o outro lado mais secreto do ser que nos é negado pelos outros no dia-a-dia.

Porque não abrimos mão de sonhar com imagens de insustentável alegria ou tristeza sem as partilharmos.

Porque somos insatisfeitos, inconformados, sonhadores, livres e aéreos avoados.

Porque adoramos ler, adoramos papéis, pequenos, grandes, letras, entrevistas, livros de tudo sobre tudo, até dicionários…porque temos a paixão pelos outros e pelas palavras nas quais nos deitamos.

Porque amamos, apreciamos, odiamos. E prestamo-nos a escrever e reescrever as palavras meses a fio, guardando, riscando, deitando fora e recuperando, num exercício obsessivo de paciência que vai ao mais fundo de nós.

Porque somos vaidosos e perguntamo-nos sempre sobre o melhor de nós.

Porque queremos dizer, fingindo e queremos fingir, dizendo.

Porque esta é a única forma de derrotar a realidade, de enfrentar a morte e o sofrimento, a sombra e a luz, a ternura e o ódio, reconstruindo sempre.

Porque escrever é um lugar de arte, de metáforas, onde podemos reinventar todos os lugares.

Porque sofrendo, não queremos sofrer de solidão.

Porque…

“Atravesso desbotados
anjos que o tempo não devolve

existências de água e vento
onde habitam sons de prata
eternidade por dentro
desassossego que mata

carne acesa a desistir
inteira o que a tristeza deseja
para que tudo cante
o lembrar a cada instante

a única solidão”

(Magalhães, G.M, (2006) Na memória dos pássaros, Palimage.

Onde procuro no outro o que há de meu na intemporalidade das palavras.

Bibliografia:
Bucay, G.(2004). Deixa-me que te conte, Pergaminho.
Magalhães, G.M, (2006) Na memória dos pássaros, Palimage.
Rezende, Stela M. de (2007) Esses livros dentro da gente, Casa da Palavra.