08 maio, 2008

Poesia, Poeta, Poema - Marco Alexandre Rebelo

POESIA POEMA POETA


Poesia

Do grego ποιέω (poïesis), que traduzido significa fazer, criar alguma coisa, a poesia começa por ser a arte da criação de ritmos sonoros encantatórios através das palavras. O ponto de partida de toda a criação poética era a tensão entre o elemento dionisíaco e o elemento apolíneo. O elemento dionisíaco exprimia-se através da dor e do conflito surgidos do extasiante processo de esquecimento de si mesmo e consequente desaparecimento do subjectivo, procura a união com o Uno primordial para o reproduzir em música, já o elemento apolíneo, devido ao seu efeito de sono, trazia a esta música uma imagem onírica simbólica.

Homero, criador de poesia épica, é um poeta mais apolíneo, enquanto que Arquíloco, criador de poesia lírica, é um poeta mais dionisíaco. É essa a dualidade que os separa. A questão objectividade-subjectividade que, em função do épico e do lírico, pretende classificar Homero como poeta objectivo e Arquíloco como poeta subjectivo, é uma falsa questão porque se o outro ou os outros e as suas acções são o objecto do sujeito épico, na lírica grega, o eu é objecto do sujeito lírico, com os seus pensamentos, sentimentos e acções. A poesia é sempre objectiva. Criar alguma coisa, fazer, tornar algo em poesia obriga sempre à libertação do eu, à superação do eu. O sujeito épico supera-se a si mesmo realizando uma viagem pelo universal expressa de forma a criar intimidade. Já a auto-superação do sujeito lírico é feita numa viagem ao mais íntimo de si mesmo expressa de forma a que o mais íntimo seja também o mais universal.

Do atrito apolíneo-dionisíaco, presente ainda em Horácio (para quem a arte poética era deleite, comoção e fingimento), a poesia vai evoluir para uma forma de conhecimento do mundo, do homem e do homem perante o mundo — a poesia torna-se potência reveladora deste mundo e criadora de um outro. Mas ela é também um jogo, um trabalho ou, noutros casos, uma actividade ascética onde, junto com a alegria, tédio, desespero e angústia aparecem como alimento e combustível. Por isso se diz e se pode de facto dizer que a poesia «é filha do acaso, fruto do cálculo» e que isola, une, salva, abandona, nega a história, faz a história.

Poema

Nem o verso, nem as leis da métrica ou do ritmo conseguem definir o poema. Semanticamente, poema é das palavras mais instáveis do dicionário. Muitos tratados latinos são escritos em verso e obedecem às leis da métrica, apesar disso seria preciso muita ignorância ou atrevimento para considerar cada um deles como um poema. Prova de muito menos atrevimento e ignorância seria, apesar de escrito em prosa e sem seguir regularmente qualquer lei métrica, chamar poema ao Satyricon de Petrónio, pois prosa não se opõe nem a poesia, nem a poema. A oposição é entre verso, que etimologicamente significa volta, curva, mudança de linha e prosa, que, por sua vez, significa “em linha recta”. O “Poema em linha recta” de Pessoa é escrito em verso mas, nele, linha recta é uma metonímia de prosa. Prosa entendida à luz da época contemporânea que viu a consagração do romance como forma literária, ou seja, prosa entendida como o lugar onde se trata dos temas da porrada, da vileza, da cobardia, das criadas de hotel, das vergonhas financeiras e por aí fora, sempre em linha recta, por oposição à poesia que passou a ser quase como um lugar reservado aos temas do ideal, do divino, dos actos nobres e elevados, dos semi-deuses e dos príncipes. Isto quando basta uma leve leitura para ver que os temas da porrada, da vileza, da cobardia não eram alheios aos poemas de Homero. Sempre que há um movimento literário, metaliterário ou extraliterário que ameaça fixar o poema na lei de um género ou de uma forma que o defina, há também um poeta a mostrar que o poema só pode ser indefinido pois, na sua indefinição, o poema é por essência o lugar de encontro da poesia com o poeta. Lugar onde toda e qualquer forma, aparentemente fixa e uniforme, é constantemente deformada, reformada, transformada.

Poeta

Transformador, reformador, deformador e, por isso, um fingidor… que finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente. Definindo e afirmando o poeta como fingidor, Pessoa objectiva algo presente, por exemplo, em Arquíloco, Horácio, Catulo, Virgílio, Shakespeare e Hölderlin — a arte de fingere no sentido que foi usado por Horácio na Arte Poética, sentido que vai desde formar e representar até modelar, esculpir, criar, compor, imaginar, forjar e fingir… De uma ou de outra forma, todos os que são poetas fingem por completo. Fingidores de si, fingidores do outro e fingidores do mundo. Fingidores do humano e fingidores do divino. E é ao fingirem que mais se aproximam dos atributos conotados aos deuses. Mas os poetas não são divinos, muito menos são humanos. Nem humanos, nem divinos. Por isso, nada pior quando um poeta tenta ou ser humano ou assumir-se como divino.

Do mesmo modo, o maior atentado contemporâneo à poesia é querer torná-la humana, ou seja, querer torná-la numa forma de comunicação, forma que encontra uma das melhores definições na célebre fórmula: «Não podemos não comunicar». Mas esta fórmula, como todas as fórmulas e todas as formas, só vale para o que é humano, estritamente humano, por isso não pode valer para a arte literária que, como todas as artes, participa do divino. Outra maneira (mais subtil) de atentar contra a poesia, é pretender torná-la somente divina, ao afastá-la da Terra e colar-lhe o rótulo de coisa incompreendida. A poesia poderá quando muito ser incompreensível, já que exige uma predisposição para sair do caminho horizontal de compreensão e entrar num caminho de compreensão vertical. O caminho horizontal de compreensão é próprio da comunicação, actividade humana que pode ser vista como um movimento pragmático da linguagem e que, assim, exige um nivelamento de forma a pôr em comum ideias e conceitos. Já o caminho vertical de compreensão é uma exigência da expressão, que, opondo-se à comunicação, busca através da linguagem um movimento de ascensão e de permanente desnivelamento que cria ideias, estéticas e conceitos novos. Subindo por este caminho, é possível que nunca se chegue à compreensão da poesia, pois talvez a poesia seja mesmo coisa incompreensível. Mas decretar incompreendida uma obra poética é nunca abandonar o caminho horizontal, é nunca aventurar-se no caminho vertical.

Na poesia que procura exprimir e não comunicar, enquanto as palavras participam do humano, o silêncio participa do divino. A obra de um poeta, o poema contínuo, constrói-se na tensão entre as palavras que organizam o discurso e o silêncio que o provoca e prolonga. O que é próprio dos poetas, o que os afasta do que é humano, não é a forma de dominar as palavras, mas sim o meio de retirar o indizível ao seu silêncio. Os poetas aproximam-se e afastam-se entre si pela forma que têm de procurar, dominar e revelar esteticamente o silêncio que lhes é próprio. Cada silêncio revelado por um poeta traz consigo um novo silêncio por revelar. Sem esta renovação constante do silêncio, a arte literária deixaria de ser possível.

Alheia isto, a crítica literária, salvo raras excepções, tem tido como uma das maiores preocupações convencer o público da divindade dos poetas, talvez com o intuito de ver as suas obras serem cultivadas tal como se cultivava a suposta palavra de Deus nos templos e igrejas. Foi assim durante séculos. Mas, ultimamente, com a transformação do público leitor em público consumidor, a tendência é convencer o público de que os poetas são tão humanos quanto ele. E querem-se poetas humanos ao ponto de abdicarem da procura do silêncio para poderem satisfazer os gostos de quem se habituou a não exigir mais do que aquilo que lhe é oferecido pela comunicação e por todos os seus meios. Cultivam-se as palavras sem silêncio destes “poetas” tal como se cultivam as palavras sonoras dos grandes magnatas e políticos que «subiram a pulso na vida», entenda-se aqui “vida” apenas como o lugar onde se dá a circulação de bens e mercadorias do mercado capital. E para o bem-estar da “vida”, quer dizer, para a boa circulação de bens e mercadorias, é conveniente que os livros se apresentem como obras completas, comunicativas e de compreensão totalmente horizontal. Depois cabe à indústria publicitária aliciar consumidores com os habituais slogans do “inovador”, do “revolucionário”, do “marcante”, do “clássico contemporâneo”, do “absolutamente original”. Em todos os meios de comunicação, durante certo tempo, um desses livros será “incontornável”. Talvez o difícil seja explicar e perceber como é que ainda nenhuma organização de consumidores se lembrou de exigir que estes livros “incontornáveis” passem a vir acompanhados de um prazo de validade. Prazo que deveria corresponder ao tempo que leva o incompletar dessas obras escritas por quem silencia o silêncio embelezando aqui e ali a língua. A verdade é que, nascendo já completos, esses livros “incontornáveis” são obras que normalmente se completam ao fim de um ou dois anos, por vezes vinte ou trinta, conforme o tempo que demoram a calar-se as vozes humanas. Quando se calam estas vozes, percebe-se que o silêncio não se renovou com essas obras, mas sim com a obra dos poetas que procuraram e conseguiram escrever sem silenciar totalmente o silêncio. Poetas cuja obra vai ficando a cada dia mais incompleta, pois está constantemente a ser renovada por aqueles que se aventuram no caminho vertical da apreensão estética.

Possivelmente a pensar nestes poetas, Fernando Pessoa, ao construir o silêncio de Ricardo Reis através de um apontamento de Álvaro de Campos, recorda a hipótese intrigante de que talvez não possa haver poetas neste mundo fora do silêncio dos seus corações. Aceitando a hipótese, surgem outras duas hipóteses: uma é afirmar que ser integralmente poeta obriga a um compromisso total com o silêncio; a outra é perceber o que impede os poetas de existir fora do silêncio — perceber que o maior obstáculo à poesia é aquilo que silencia o silêncio poético: as palavras. As mesmas palavras que dão corpo ao grande veículo de comunicação quotidiana e instrumento lógico e ideológico da ordem social: a língua. Talvez a língua não permita que neste mundo haja poetas fora do silêncio dos seus corações, já que obedecer às normas e mecanismos que a regem é permanecer num horizonte lógico. Horizonte onde a arte literária é entendida apenas como um embelezamento da língua que não põe em causa a sua função pragmática. Acontece que este entendimento nega à arte aquilo que deveria ser a sua mais forte razão de existir: a expressão de um conhecimento estético que, pela sua raiz sensível, se opõe claramente ao conhecimento lógico, de raiz conceptual. Por isso, a viagem cujo horizonte não é lógico, mas sim estético, implica o desejo de destruição daquilo que sustenta o conhecimento conceptual, ou seja, implica querer destruir toda e qualquer função pragmática da língua. Despragmatizar totalmente a língua significa chegar ao silêncio, limiar de todo e qualquer horizonte estético. Assim, a poesia esteticamente emancipada procura encontrar e defender uma forma em que o silêncio fale apesar do ruído das palavras. Porque a vida não é, não poder ser, não pode passar a vir a ser a circulação de bens e mercadorias que a todo o momento o mercado quer impingir. Estão cá os poetas, os poemas e a poesia para recordar que viver é criar e defender uma forma própria.

Mas porquê e para quê defender uma forma própria? Porque só é poeta aquele que sabe que há algo mais importante do que ser conhecido ou ser reconhecido. Porque os poetas não são aqueles que vivem para ser conhecidos pelo público ou reconhecidos pelos seus pares, ou ambos. Porque mais importante que ser conhecido ou reconhecido é conhecer. Os poetas são aqueles que vivem para conhecer. Defender uma forma própria para conhecer e conhecer-se. Por isso, continuam vivos os poetas que, desde Homero, tiveram e têm ainda a coragem de conhecer o mundo encontrando e depois defendendo uma forma própria. Andam mortos os “poetas” que, desde os cafés aos parlamentos passando pelas universidades e outros meios de formação e informação de massas, apoiam, cultivam e alimentam a forma dos que controlam os mercados da comunicação com as suas “criações”, a sua escrita criativa, a sua produção fictícia, as suas traduções e críticas literárias humanas, demasiado humanas.

É lembrando e traduzindo os versos nem humanos nem divinos de um sempre vivo poeta francês que vou terminar:

Que ton vers soit la bonne aventure
Eparse au vent crispé du matin
Qui va fleurant la menthe et le thym...
Et tout le reste est littérature.

Que o teu verso seja a grande aventura
Solto ao vento fresco da manhã
Que vá florindo menta e hortelã…
E tudo o resto é literatura.

Bonne não é grande, Eparse não é Solto, crispé não é fresco, thym não é hortelã... mas, de resto, respeita totalmente a métrica e há somente uma diferença na acentuação de um dos versos. Parece “fácil” vendo apenas a conclusão e é “fácil” que tem de parecer. Mas nesse fácil está o trabalho todo que é tentar transformar para outra língua aqueles versos franceses de forma a ficarem o menos diminuídos possível com a transformação. Fácil seria fazer em linha recta onde o thym ficasse tomilho, o crispé ficasse crispado, o eparse ficasse esparso e o bonne ficasse boa. Mas boa não ficaria a tradução porque só transformando o boa em grande, o esparço em solto, o crispado em fresco e o tomilho em hortelã é que se começa la bonne aventure que é a Arte Poética.

Marco Alexandre Rebelo