09 maio, 2008

poema, Poeta, POESIA

Encontro com Herberto Helder
............................................A Luís de Camões
Há algures uma cidade interrompida onde a luz
já se vai perdendo prostrada entre as âncoras
como estiletes arejados enjaulados nas palavras,
.
deves ir pela tarde mágica das trovoadas ávidas
quando Cascais vai morrendo um pouco menos
apesar de o miolo da carne infindável ser sangue
emergindo como fungos atiçados junto à pele
em ciclos de intempéries e migrações filicídias,
.
vai procurá-lo nos jardins embora não te fale
(esquecerás que transportas o contágio das dores
as manhãs ressuscitarão secas sobre os espigões
ao longo das vozes aguçadas a cidade coagulada
ardendo nas candeias sob o ritual dos êmbolos),
.
pergunta na praça das súplicas enxutas dos velhos
por aquele homem que menstruou a sílaba nua
quando na cidade passava o ar odorífero das ilhas
ele que lutou nos campos da cal contra as cobras
para que a escassa estria ainda se ouça torrencial,
.
no absurdo da busca na casa do espectro da areia
reside a transparência materna os últimos dias
senta-te sob os salgueiros com a cabeça inclinada
ouve o vento e cheira as entranhas certas da morte
o corpo estilhaçando-se em múltiplas direcções,
.
pára não digas nada ao ouvido das nascentes
(enquanto escutas as patas frágeis da magnólia
bebe a cidade pelo sexo aberto das fêmeas azuis
guelras por onde resfolega toda a luz preambular
como se fosse a redentora faísca o corpo vegetal),
.
aí, junto à água, o engenho das bigornas brancaso
fogo das mãos sagazes ardendo como ofício puro
casulo entre as bilhas onde habita o bafo do poeta.
João Rasteiro
.
Minha Cabeça estremece com todo o esquecimento - Herberto Helder


.
João Rasteiro, 09/05/2008