30 junho, 2008

A Miguel Hernández

(A Silvestre Raposo que um dia me relembrou a história ...)


talvez tivesses ido ao fundo da algibeira e tirasses dela uma guitarra andaluza no oiro de umas horas invisíveis e um cante já fosse noite

um cante por inteiro só de vida com a lua a festejar-se

no azul do teu fato e na corrente intemporal o sol ainda se prante

talvez tivesse sido o vibrar dos ponteiros desse relógio preso a oiro num gemido e tenhas tidas muitas horas só no rosto reunidas

talvez tivesses dito:

- tenha eu um bago de murta branca ainda e uma espiga arrancada do centeio nestes campos e mais adiante veja barrancos vermelhos como a lua pingando astros brancos no tremer do trigo tremês

talvez tivesses pensado :

- descanso

- tanto tenho andado

eu sinto essa espera de ver horas num estômago de andar caminhos

acompanho-te no tempo e no poema que ainda não está escrito

talvez a ti chegue como hoje chegam as horas de luas fundas aos palmares à mediterrânica luz quente que avermelha a chuva

soe no teu ouvido uma campainha da igrejita do pueblo

da tua infância

cantem campainhas nos campos vendas leite te soem versos

no trilho das cabras passando ao lado na espaçada distância

na medida tradicional de o verter e sentir o branco da medida talhada na rima do gesto de a sentir e servir

e do acerto do tempo do frio e sol chuva e vento em Oriuhela


talvez o sonho de Madrid na paga de quem desdenha e ri

tu crias e de crer deixaste na lã cipreste um cante de arena

talvez lembrasses a folha de hortelã a herba buena


visses dois pés num azul de fato todo branco levantado todo corpo

na coragem de um campo circular de touros de sangue a explodir morte e

tu andando sendo esse o teu o caminho de brio confiante

talvez na treva de um barranco tenhas visto aí por um nada

horas que eram anos e graças de assobio de pássaros lavados

e frutos vivos tivesses por companhia soubesses que ainda eram engolidos

pelo fumo e nem havia nem brilhava o sol do meio dia

assim eu te pranto

a golpe de melancolia

eu te canto

eu te sei eu me hermano

e tu

sob o céu sempre negro de fumo de asas de um corvo velho

cobrindo o tempo de faísca e pólvora e tu tocado ainda no corpo

pressentindo cada piolho do tamanho de um figo de piteira já na tua pele de prisão ávida de engordar no dia-a-dia no teu coração de poeta de uma só palavra

eu te canto

a golpe de melancolia

eu te sei firme na distância de um barranco

eu te canto e nos meus dias te irmano

os espinhos mais que os piolhos vermelhos de sangue

já viviam na alegoria de cada instante

foste caminho com a boca correndo a quilómetros

podias mais com a guitarra de algibeira

o relógio mais puro doado por Vicente Aleixandre e

o vender quisesses pelo preço de um só dia

de uma só côdea de um só gole de água

não correndo nada num só pequeno rio

eu te canto

eu te sei

eu te pranto

é minha a melancolia

e te tendo perto de alegria

não querendo eu te pranto

talvez a esteva florisse por ti viesse uma qualquer cabra alvoraçada

para comê-la fosse longínqua a língua e a lua tão distante verso escrito no cabelo do vento levando notícia a Josefina e a vosso filho dizendo:

- tenho a lua do meu lado agora brilha numa guitarra de ponteiros de relógio sei as horas ainda sou Miguel Hernández

talvez quisesses um trilo harmonioso tivesses o teu ouvido à espera de poucos pares de violetas pretas abrindo hastes verdes

mas o sol era uma evidência de pólvora de sangue nos pés de muitos caminhos

talvez fosses acompanhado e com um verso miúdo encantasses uma criança um filho corajoso para o futuro no teu relógio de ouro doado e esse filho fosse ainda outro Serrat o da voz cantada já te acompanhasse

dando -se por inteiro às nanas de cebolla que ouço na tua língua

só na tua língua de escrita lida ou cantada

talvez quisesses guardar o rebanho em Orihuela à mingua de tudo

qualquer que fosse a estação do ano não indiferente ao relógio de ouro sempre presente ainda os figos de piteira não se alimentavam dos teus ossos

nas prisões onde te veio a tuberculose mas antes essa do que uma candeia apagada com um Leque de carne vermelha e amarela Sujo

talvez não suportasses esse gesto perverso que apagava do sul

o teu mundo nómada de nascença e extinguisse para sempre o sol do sul e de muito mundo ainda por vir

talvez nada pensado assim fosse mas com tudo isto se parecesse e eu soubesse por uma corrente nos dias tu outros tantos viessem para Lisboa vinte escudos recolhidos no bolso de fato azul uma fuga que te acompanharia o pescoço as horas paradas quer no norte quer no sul e na tua corrente amealhadas cantando o grito inaugural que se coalhava nas estradas e não vibrava como o lume

imagino-te na relojoaria impondo o relógio às horas mercantis e pobres e te fizessem passar por ladrão ou vagabundo a libertar-se do tempo

e a tua voz dizendo:

-sou um poeta e quebro outro tempo ouço outro mundo

-sou um poeta vendo outro tempo

- vendo um relógio por alimento

e alguma gente de olhos ocos e ouvidos desertos

te vingasse sorridente enquanto outros deixavam

para sempre a tua passagem perto de Moura

na aldeia ferida de cal e negro de Santo Aleixo

a terra viva de poeta e ainda diga por muito tempo

num coro ou numa só voz

esta terra tem ainda um relógio de uns passos

um fato azul vinte escudos no bolso aqui passou

um poeta a quebrar o Tempo


José Ribeiro Marto
Canção de cuna: nanas de cebolla de Miguel Hernández, cantada por Juan Manuel Serrat