(A Silvestre Raposo que um dia me relembrou a história ...)
talvez tivesses ido ao fundo da algibeira e tirasses dela uma guitarra andaluza no oiro de umas horas invisíveis e um cante já fosse noite
um cante por inteiro só de vida com a lua a festejar-se
no azul do teu fato e na corrente intemporal o sol ainda se prante
talvez tivesse sido o vibrar dos ponteiros desse relógio preso a oiro num gemido e tenhas tidas muitas horas só no rosto reunidas
talvez tivesses dito:
- tenha eu um bago de murta branca ainda e uma espiga arrancada do centeio nestes campos e mais adiante veja barrancos vermelhos como a lua pingando astros brancos no tremer do trigo tremês
talvez tivesses pensado :
- descanso
- tanto tenho andado
eu sinto essa espera de ver horas num estômago de andar caminhos
acompanho-te no tempo e no poema que ainda não está escrito
talvez a ti chegue como hoje chegam as horas de luas fundas aos palmares à mediterrânica luz quente que avermelha a chuva
soe no teu ouvido uma campainha da igrejita do pueblo
da tua infância
cantem campainhas nos campos vendas leite te soem versos
no trilho das cabras passando ao lado na espaçada distância
na medida tradicional de o verter e sentir o branco da medida talhada na rima do gesto de a sentir e servir
e do acerto do tempo do frio e sol chuva e vento em Oriuhela
talvez o sonho de Madrid na paga de quem desdenha e ri
tu crias e de crer deixaste na lã cipreste um cante de arena
talvez lembrasses a folha de hortelã a herba buena
visses dois pés num azul de fato todo branco levantado todo corpo
na coragem de um campo circular de touros de sangue a explodir morte e
tu andando sendo esse o teu o caminho de brio confiante
talvez na treva de um barranco tenhas visto aí por um nada
horas que eram anos e graças de assobio só de pássaros lavados
e frutos vivos tivesses por companhia soubesses que ainda eram engolidos
pelo fumo e nem havia nem brilhava o sol do meio dia
assim eu te pranto
a golpe de melancolia
eu te canto
eu te sei eu me hermano
e tu
sob o céu sempre negro de fumo de asas de um corvo velho
cobrindo o tempo de faísca e pólvora e tu tocado ainda no corpo
pressentindo cada piolho do tamanho de um figo de piteira já na tua pele de prisão ávida de engordar no dia-a-dia no teu coração de poeta de uma só palavra
eu te canto
a golpe de melancolia
eu te sei firme na distância de um barranco
eu te canto e nos meus dias te irmano
os espinhos mais que os piolhos vermelhos de sangue
já viviam na alegoria de cada instante
foste caminho com a boca correndo a quilómetros
podias mais com a guitarra de algibeira
o relógio mais puro doado por Vicente Aleixandre e
o vender quisesses pelo preço de um só dia
de uma só côdea de um só gole de água
não correndo nada num só pequeno rio
eu te canto
eu te sei
eu te pranto
é minha a melancolia
e te tendo perto de alegria
não querendo eu te pranto
talvez a esteva florisse por ti viesse uma qualquer cabra alvoraçada
para comê-la fosse longínqua a língua e a lua tão distante verso escrito no cabelo do vento levando notícia a Josefina e a vosso filho dizendo:
- tenho a lua do meu lado agora brilha numa guitarra de ponteiros de relógio sei as horas ainda sou Miguel Hernández
talvez quisesses um trilo harmonioso tivesses o teu ouvido à espera de poucos pares de violetas pretas abrindo hastes verdes
mas o sol era uma evidência de pólvora de sangue nos pés de muitos caminhos
talvez fosses acompanhado e com um verso miúdo encantasses uma criança um filho corajoso para o futuro no teu relógio de ouro doado e esse filho fosse ainda outro Serrat o da voz cantada já te acompanhasse
dando -se por inteiro às nanas de cebolla que ouço na tua língua
só na tua língua de escrita lida ou cantada
talvez quisesses guardar o rebanho em Orihuela à mingua de tudo
qualquer que fosse a estação do ano não indiferente ao relógio de ouro sempre presente ainda os figos de piteira não se alimentavam dos teus ossos
nas prisões onde te veio a tuberculose mas antes essa do que uma candeia apagada com um Leque de carne vermelha e amarela Sujo
talvez não suportasses esse gesto perverso que apagava do sul
o teu mundo nómada de nascença e extinguisse para sempre o sol do sul e de muito mundo ainda por vir
talvez nada pensado assim fosse mas com tudo isto se parecesse e eu soubesse por uma corrente nos dias tu outros tantos viessem para Lisboa vinte escudos recolhidos no bolso de fato azul uma fuga que te acompanharia o pescoço as horas paradas quer no norte quer no sul e na tua corrente amealhadas cantando o grito inaugural que se coalhava nas estradas e não vibrava como o lume
imagino-te na relojoaria impondo o relógio às horas mercantis e pobres e te fizessem passar por ladrão ou vagabundo a libertar-se do tempo
e a tua voz dizendo:
-sou um poeta e quebro outro tempo ouço outro mundo
-sou um poeta vendo outro tempo
- vendo um relógio por alimento
e alguma gente de olhos ocos e ouvidos desertos
te vingasse sorridente enquanto outros deixavam
para sempre a tua passagem perto de Moura
na aldeia ferida de cal e negro de Santo Aleixo
a terra viva de poeta e ainda diga por muito tempo
num coro ou numa só voz
esta terra tem ainda um relógio de uns passos
um fato azul vinte escudos no bolso aqui passou
um poeta a quebrar o Tempo
José Ribeiro Marto
Canção de cuna: nanas de cebolla de Miguel Hernández, cantada por Juan Manuel Serrat