21 junho, 2008

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O vento


Queria transformar o vento.
Dar ao vento uma forma concreta e apta a foto.
Eu precisava pelo menos de enxergar uma parte física
do vento: uma costela, o olho...
Mas a forma do vento me fugia que nem as formas
de uma voz.
...
Estava quase a desistir quando me lembrei do menino
montado no cavalo do vento - que lera em Shakespeare.
Imaginei as crinas soltas do vento a disparar pelos
prados com o menino.
Fotografei aquele vento de crinas soltas. (p.27)
*


O punhal

Eu vi uma cigarra atravessada pelo sol - como se
um punhal atravessasse o corpo.
Um menino foi, chegou perto da cigarra, e disse que
ela nem gemia.
Verifiquei com meus olhos que o punhal estava
atolado no corpo da cigarra
E que ela nem gemia! Fotografei essa metáfora.
Ao fundo da foto aparece o punhal em brasa. (p. 37)
*

Miró

Para atingir sua expressão fontana
Miró precisava de esquecer os traços e as doutrinas
que aprendera nos livros.
Desejava atingir a pureza de não saber mais nada.
Fazia um ritual para atingir essa pureza: ia ao fundo
do quintal à busca de uma árvore.
E ali, ao pé da árvore, enterrava de vez tudo aquilo
que havia aprendido nos livros.
Depois depositava sobre o enterro uma nobre
mijada florestal.
Sobre o enterro nasciam borboletas, restos de
insetos, cascas de cigarra etc.
A partir dos restos Miró iniciava a sua engenharia de cores.
Muitas vezes chegava a iluminuras a partir de um
dejeto de mosca deixado na tela.
Sua expressão fontana se iniciava naquela mancha
escura.
O escuro o iluminava. (p. 29)
*

O fotógrafo

Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre
as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado,
Preparei minha máquina.
O silêncio era o carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Por fim eu enxerguei a Nuvem de calça.
Representou para mim que ela andava na aldeia de
braços com Maiakovski – seu criador.
Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
mais justa para cobrir a sua noiva.
A foto saiu legal.

Manoel de Barros
In: Ensaios Fotográficos
Rio de Janeiro: Record, 2000
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Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada

Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
- Imagens são palavras que nos faltaram.
- Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
- Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira.
Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo)
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.

Manoel de Barros
In: O Guardador de Águas
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enviado por Rui Mendes.