29 junho, 2008

Comunicação apresentada por Pompeu Martins no lançamento do livro de Graça Magalhães "Lavrar no Corpo das Algas"

Lavrar no corpo do amor.

Por Pompeu Miguel Marfins

Viseu, 31 de Maio de 2008.

«Lavrar no corpo das algas» é o nome da nova incursão de Graça Magalhães nos meandros da poesia. O título é por si revelador de toda a forma e de toda a técnica que a autora imprime à escrita poética, apontando para uma proposta de leitura que nos remete para uma íntima relação entre o que é íntimo em nós e a forma como conseguimos tornar íntimo o que é do mundo.

Lavrar como quem vai às entranhas e aí remove para plantar e para ser. Lavrar para dar vida e dar à vida a expressão mais pura e mais nossa.

Lavrar no corpo das algas, um espaço de luzidias formas, de desejos incomensuráveis, de relações extremas com o tempo e com a sua negação, mas também com o tempo e a sua apropriação.

Temos um livro em mãos como se tivéssemos a forma da nossa intimidade em mãos para redescobrir pela linha enigmática da linguagem poética. Ainda bem que a poesia é um enigma, pois desse mistério se cria o leitor. E neste livro, está bem presente o desafio de sermos um e de sermos cada um a ler estes versos e deixar para os outros os códigos dos outros, a linguagem do amor dos outros, o seu corpo, o seu desejo e a sua deriva, para nele entrarmos e podermos redescobrir as nossas próprias sensações, os nossos limites e a perseverança das nossas crenças enquanto sujeitos de amor.

Comece-se, então, a viagem pelas palavras de Graça Magalhães e já no primeiro poema pare-se para chegar à visão libertadora do que é íntimo e do íntimo se constrói:

Olhando para mim o tempo dorme/ o silencio vem eterno/ fazer um arco de asa em cada olhar (...)

A poesia tem com as regras do mundo esta desregra, a possibilidade de imiscuir na coisa una que é o corpo as emoções e as transformações da coisa infinita que é o mundo e as suas ideias, os seus sentimentos e ainda as suas paixões.

E posso trespassar o abismo/dar o som ao nome na raiz do grito/ acender delírios no interior da carne/ com o amor aberto como um caminho. / /Reacendem-me os teus dedos traçados em pássaros/ abstractos.

Quantas vezes percebemos, em cada um de nós a raiz do grito, vindo ele de lados tão diferentes e de razões tão dispares? E quantas vezes foi da memória de delírios acesos que foi levado à evidência essa osmose, só possível ao coração, de tornar os dedos pássaros, tantas vezes breves, tantas vezes quentes, outras tantas de fugida, de miragem ou de missão?

Assim largamos o primeiro e belo poema deste livro para seguirmos na direcção a uma outra ideia, muito presente, que se prende com o confronto entre o que é exterior e o que é do domínio da sensibilidade e da intimidade.

Pelas entranhas carnívoras da pele/penso no caule do corpo se um clarão se despenha a meio da flor./ O horizonte baixa-se dentro das mãos / e das mãos as linhas róseas / de espinhos. // Misturo-me com as coisas terrenas que desejo/ e por dentro clareia o corpo entre escombros.

Esta obra é também um exercício sobre a poética que existe dentro da própria poesia num continuado recurso ao que as palavras e o seu trabalho podem significar em tomo das diferentes temáticas que sempre desaguam no amor, no desejo e na liberdade. Nesse imiscuir da poética sublinho o verso:

Dançamos a poética do olhar calado/ porque todas as palavras servem o silêncio / de uma árvore quando cresce.

É fantástica esta analogia entre o crescimento de uma árvore, o de um olhar e da sua poética, numa inteligente apreciação do seu magnífico silêncio e da sua reveladora consequência de beleza e de exuberância face aos frutos, sejam eles do olhar, da árvore ou da própria arte.

A interpretação do tempo é outra constante, como se pode verificar no quinto poema, ao relacionar-se o trajecto da pele com a contagem do tempo:

Colhi as farpas dos frutos/costurei a dobra dos búzios/ para adormecer a pele metáfora do tempo.


Efectiva metáfora do tempo, a pele é também recurso para dizer o indizível e nisso dar claros sinais da expressão enquanto veículo de comunicação da arte e do que não deve ser do domínio do explicito, mas antes do criado, e sobretudo do a criar.

O cheiro a roçar intimidade/ o molusco desancorado/ rumorejando na pele/ cruzando sensações de sabor. // Cada essência assim/ é uma evidência de felicidade sem forma.

Encontro ainda nesta viagem pelo livro, a memória dos pintores impressionistas e a recorrência a paisagens que sempre ambicionámos que ficassem paradas nas nossas muitas idades, nos nossos mais profundos registos.

Talvez eu não seja o tempo interior/ a cereja das árvores no cio/ a lagarta coração invadindo a flor/ o fluir dos lábios ao começo das palavras/ o encantar do silêncio nos pessegueiros.

Este poema é um recato, um pequeno oásis na paisagem, um lugar onde apetece ficar por muito tempo e aí vagarosamente construir a noção de uma vida e de todas as suas ousadias, de todos os extremos que á distância nos revelam o que aprofundámos até encontrar no silêncio o seu encantamento e nos pessegueiros a origem da idade, da sensualidade, no que ela tem de perfume, de brilho e de doçura.

E no fim de cada verso, aparentando como escrevia Eugénio que «as palavras estão gastas», a crença de Graça Magalhães no milagre da escrita em fusão com o mundo:

Dá-lhe tempo de receber o azul pela manhã./ Veste depois a boca de olhares húmidos e gastos/ Derrama o corpo suave na grata imoralidade/ E adormece a primeira das formas/ entre ela e tudo o que pode persistir.

Poesia do corpo e de pactos, de entregas e de juras pousadas na mais inquietante lembrança do amor:

Quero estar outra vez no olhar dos lírios/ no despudor do fogo

Ou ainda noutro poema:

Cheguei a pensar no incêndio das mimosas/ era lá que nos encontrávamos a meio de uma invasão/ nas areias bordadas da praia grande.

No contraste com a inquietação da vida, a inquietação da morte, seja ela no que há em si de para sempre ou de recomeço. Quantas vezes se

morre ao longo de uma só vida? E quantas vidas se perdem nas múltiplas vezes onde fomos morrendo. O último poema de Graça Magalhães aponta para essa síntese de finitudes e despedidas, de momentos muito íntimos que vêem em si uma ligação natural à solidão que chega depois do desejo, da intimidade e de todo o amor:

Quando ela morrer num apresto de festa/ inseparável do mistério da sua boca/ ficarão as palavras horizontais/ no rosto assimétrico das lágrimas./ Ficarão as macieiras perfumadas/ os segredos arqueados/ arrancados ao peito em foices de prata./ Ficará o corpo deformado intenso de aromas/ a dor do xisto nas ardósias e nos gritos/ e um país contemporâneo./ Ficará a imagem das flores acumuladas/ num altar azul sob os ombros dela/ ficará o rosto fechado na linha dos olhos/ o sorriso poisado a ternura imóvel/ e a terra fresca aumentada toda aberta. / Ela poderá aí dormir com os olhos dos insectos.

«Lavrar no corpo das algas» é pois uma obra de difícil aproximação, de recriação e releitura, de desafio às nossas perguntas sobre a nossa própria forma de não dar forma à felicidade e de ser no que se não diz que reside o que mais significa e o que mais incendeia, seja esse o incêndio do corpo, das emoções ou da memória.