Lavrar no corpo do amor.
Por Pompeu Miguel Marfins
Viseu, 31 de Maio de 2008.
«Lavrar no corpo das algas» é o nome da nova incursão de Graça Magalhães nos meandros da poesia. O título é por si revelador de toda a forma e de toda a técnica que a autora imprime à escrita poética, apontando para uma proposta de leitura que nos remete para uma íntima relação entre o que é íntimo em nós e a forma como conseguimos tornar íntimo o que é do mundo.
Lavrar como quem vai às entranhas e aí remove para plantar e para ser. Lavrar para dar vida e dar à vida a expressão mais pura e mais nossa.
Lavrar no corpo das algas, um espaço de luzidias formas, de desejos incomensuráveis, de relações extremas com o tempo e com a sua negação, mas também com o tempo e a sua apropriação.
Temos um livro em mãos como se tivéssemos a forma da nossa intimidade em mãos para redescobrir pela linha enigmática da linguagem poética. Ainda bem que a poesia é um enigma, pois desse mistério se cria o leitor. E neste livro, está bem presente o desafio de sermos um e de sermos cada um a ler estes versos e deixar para os outros os códigos dos outros, a linguagem do amor dos outros, o seu corpo, o seu desejo e a sua deriva, para nele entrarmos e podermos redescobrir as nossas próprias sensações, os nossos limites e a perseverança das nossas crenças enquanto sujeitos de amor.
Comece-se, então, a viagem pelas palavras de Graça Magalhães e já no primeiro poema pare-se para chegar à visão libertadora do que é íntimo e do íntimo se constrói:
Olhando para mim o tempo dorme/ o silencio vem eterno/ fazer um arco de asa em cada olhar (...)
A poesia tem com as regras do mundo esta desregra, a possibilidade de imiscuir na coisa una que é o corpo as emoções e as transformações da coisa infinita que é o mundo e as suas ideias, os seus sentimentos e ainda as suas paixões.
E posso trespassar o abismo/dar o som ao nome na raiz do grito/ acender delírios no interior da carne/ com o amor aberto como um caminho. / /Reacendem-me os teus dedos traçados em pássaros/ abstractos.
Quantas vezes percebemos, em cada um de nós a raiz do grito, vindo ele de lados tão diferentes e de razões tão dispares? E quantas vezes foi da memória de delírios acesos que foi levado à evidência essa osmose, só possível ao coração, de tornar os dedos pássaros, tantas vezes breves, tantas vezes quentes, outras tantas de fugida, de miragem ou de missão?
Assim largamos o primeiro e belo poema deste livro para seguirmos na direcção a uma outra ideia, muito presente, que se prende com o confronto entre o que é exterior e o que é do domínio da sensibilidade e da intimidade.
Pelas entranhas carnívoras da pele/penso no caule do corpo se um clarão se despenha a meio da flor./ O horizonte baixa-se dentro das mãos / e das mãos as linhas róseas / de espinhos. // Misturo-me com as coisas terrenas que desejo/ e por dentro clareia o corpo entre escombros.
Esta obra é também um exercício sobre a poética que existe dentro da própria poesia num continuado recurso ao que as palavras e o seu trabalho podem significar em tomo das diferentes temáticas que sempre desaguam no amor, no desejo e na liberdade. Nesse imiscuir da poética sublinho o verso:
Dançamos a poética do olhar calado/ porque todas as palavras servem o silêncio / de uma árvore quando cresce.
É fantástica esta analogia entre o crescimento de uma árvore, o de um olhar e da sua poética, numa inteligente apreciação do seu magnífico silêncio e da sua reveladora consequência de beleza e de exuberância face aos frutos, sejam eles do olhar, da árvore ou da própria arte.
A interpretação do tempo é outra constante, como se pode verificar no quinto poema, ao relacionar-se o trajecto da pele com a contagem do tempo:
Colhi as farpas dos frutos/costurei a dobra dos búzios/ para adormecer a pele metáfora do tempo.
Efectiva metáfora do tempo, a pele é também recurso para dizer o indizível e nisso dar claros sinais da expressão enquanto veículo de comunicação da arte e do que não deve ser do domínio do explicito, mas antes do criado, e sobretudo do a criar.
O cheiro a roçar intimidade/ o molusco desancorado/ rumorejando na pele/ cruzando sensações de sabor. // Cada essência assim/ é uma evidência de felicidade sem forma.
Encontro ainda nesta viagem pelo livro, a memória dos pintores impressionistas e a recorrência a paisagens que sempre ambicionámos que ficassem paradas nas nossas muitas idades, nos nossos mais profundos registos.
Talvez eu não seja o tempo interior/ a cereja das árvores no cio/ a lagarta coração invadindo a flor/ o fluir dos lábios ao começo das palavras/ o encantar do silêncio nos pessegueiros.
Este poema é um recato, um pequeno oásis na paisagem, um lugar onde apetece ficar por muito tempo e aí vagarosamente construir a noção de uma vida e de todas as suas ousadias, de todos os extremos que á distância nos revelam o que aprofundámos até encontrar no silêncio o seu encantamento e nos pessegueiros a origem da idade, da sensualidade, no que ela tem de perfume, de brilho e de doçura.
E no fim de cada verso, aparentando como escrevia Eugénio que «as palavras estão gastas», a crença de Graça Magalhães no milagre da escrita em fusão com o mundo:
Dá-lhe tempo de receber o azul pela manhã./ Veste depois a boca de olhares húmidos e gastos/ Derrama o corpo suave na grata imoralidade/ E adormece a primeira das formas/ entre ela e tudo o que pode persistir.
Poesia do corpo e de pactos, de entregas e de juras pousadas na mais inquietante lembrança do amor:
Quero estar outra vez no olhar dos lírios/ no despudor do fogo
Ou ainda noutro poema:
Cheguei a pensar no incêndio das mimosas/ era lá que nos encontrávamos a meio de uma invasão/ nas areias bordadas da praia grande.
No contraste com a inquietação da vida, a inquietação da morte, seja ela no que há em si de para sempre ou de recomeço. Quantas vezes se
morre ao longo de uma só vida? E quantas vidas se perdem nas múltiplas vezes onde fomos morrendo. O último poema de Graça Magalhães aponta para essa síntese de finitudes e despedidas, de momentos muito íntimos que vêem em si uma ligação natural à solidão que chega depois do desejo, da intimidade e de todo o amor:
Quando ela morrer num apresto de festa/ inseparável do mistério da sua boca/ ficarão as palavras horizontais/ no rosto assimétrico das lágrimas./ Ficarão as macieiras perfumadas/ os segredos arqueados/ arrancados ao peito em foices de prata./ Ficará o corpo deformado intenso de aromas/ a dor do xisto nas ardósias e nos gritos/ e um país contemporâneo./ Ficará a imagem das flores acumuladas/ num altar azul sob os ombros dela/ ficará o rosto fechado na linha dos olhos/ o sorriso poisado a ternura imóvel/ e a terra fresca aumentada toda aberta. / Ela poderá aí dormir com os olhos dos insectos.
«Lavrar no corpo das algas» é pois uma obra de difícil aproximação, de recriação e releitura, de desafio às nossas perguntas sobre a nossa própria forma de não dar forma à felicidade e de ser no que se não diz que reside o que mais significa e o que mais incendeia, seja esse o incêndio do corpo, das emoções ou da memória.
Por Pompeu Miguel Marfins
Viseu, 31 de Maio de 2008.
«Lavrar no corpo das algas» é o nome da nova incursão de Graça Magalhães nos meandros da poesia. O título é por si revelador de toda a forma e de toda a técnica que a autora imprime à escrita poética, apontando para uma proposta de leitura que nos remete para uma íntima relação entre o que é íntimo em nós e a forma como conseguimos tornar íntimo o que é do mundo.
Lavrar como quem vai às entranhas e aí remove para plantar e para ser. Lavrar para dar vida e dar à vida a expressão mais pura e mais nossa.
Lavrar no corpo das algas, um espaço de luzidias formas, de desejos incomensuráveis, de relações extremas com o tempo e com a sua negação, mas também com o tempo e a sua apropriação.
Temos um livro em mãos como se tivéssemos a forma da nossa intimidade em mãos para redescobrir pela linha enigmática da linguagem poética. Ainda bem que a poesia é um enigma, pois desse mistério se cria o leitor. E neste livro, está bem presente o desafio de sermos um e de sermos cada um a ler estes versos e deixar para os outros os códigos dos outros, a linguagem do amor dos outros, o seu corpo, o seu desejo e a sua deriva, para nele entrarmos e podermos redescobrir as nossas próprias sensações, os nossos limites e a perseverança das nossas crenças enquanto sujeitos de amor.
Comece-se, então, a viagem pelas palavras de Graça Magalhães e já no primeiro poema pare-se para chegar à visão libertadora do que é íntimo e do íntimo se constrói:
Olhando para mim o tempo dorme/ o silencio vem eterno/ fazer um arco de asa em cada olhar (...)
A poesia tem com as regras do mundo esta desregra, a possibilidade de imiscuir na coisa una que é o corpo as emoções e as transformações da coisa infinita que é o mundo e as suas ideias, os seus sentimentos e ainda as suas paixões.
E posso trespassar o abismo/dar o som ao nome na raiz do grito/ acender delírios no interior da carne/ com o amor aberto como um caminho. / /Reacendem-me os teus dedos traçados em pássaros/ abstractos.
Quantas vezes percebemos, em cada um de nós a raiz do grito, vindo ele de lados tão diferentes e de razões tão dispares? E quantas vezes foi da memória de delírios acesos que foi levado à evidência essa osmose, só possível ao coração, de tornar os dedos pássaros, tantas vezes breves, tantas vezes quentes, outras tantas de fugida, de miragem ou de missão?
Assim largamos o primeiro e belo poema deste livro para seguirmos na direcção a uma outra ideia, muito presente, que se prende com o confronto entre o que é exterior e o que é do domínio da sensibilidade e da intimidade.
Pelas entranhas carnívoras da pele/penso no caule do corpo se um clarão se despenha a meio da flor./ O horizonte baixa-se dentro das mãos / e das mãos as linhas róseas / de espinhos. // Misturo-me com as coisas terrenas que desejo/ e por dentro clareia o corpo entre escombros.
Esta obra é também um exercício sobre a poética que existe dentro da própria poesia num continuado recurso ao que as palavras e o seu trabalho podem significar em tomo das diferentes temáticas que sempre desaguam no amor, no desejo e na liberdade. Nesse imiscuir da poética sublinho o verso:
Dançamos a poética do olhar calado/ porque todas as palavras servem o silêncio / de uma árvore quando cresce.
É fantástica esta analogia entre o crescimento de uma árvore, o de um olhar e da sua poética, numa inteligente apreciação do seu magnífico silêncio e da sua reveladora consequência de beleza e de exuberância face aos frutos, sejam eles do olhar, da árvore ou da própria arte.
A interpretação do tempo é outra constante, como se pode verificar no quinto poema, ao relacionar-se o trajecto da pele com a contagem do tempo:
Colhi as farpas dos frutos/costurei a dobra dos búzios/ para adormecer a pele metáfora do tempo.
Efectiva metáfora do tempo, a pele é também recurso para dizer o indizível e nisso dar claros sinais da expressão enquanto veículo de comunicação da arte e do que não deve ser do domínio do explicito, mas antes do criado, e sobretudo do a criar.
O cheiro a roçar intimidade/ o molusco desancorado/ rumorejando na pele/ cruzando sensações de sabor. // Cada essência assim/ é uma evidência de felicidade sem forma.
Encontro ainda nesta viagem pelo livro, a memória dos pintores impressionistas e a recorrência a paisagens que sempre ambicionámos que ficassem paradas nas nossas muitas idades, nos nossos mais profundos registos.
Talvez eu não seja o tempo interior/ a cereja das árvores no cio/ a lagarta coração invadindo a flor/ o fluir dos lábios ao começo das palavras/ o encantar do silêncio nos pessegueiros.
Este poema é um recato, um pequeno oásis na paisagem, um lugar onde apetece ficar por muito tempo e aí vagarosamente construir a noção de uma vida e de todas as suas ousadias, de todos os extremos que á distância nos revelam o que aprofundámos até encontrar no silêncio o seu encantamento e nos pessegueiros a origem da idade, da sensualidade, no que ela tem de perfume, de brilho e de doçura.
E no fim de cada verso, aparentando como escrevia Eugénio que «as palavras estão gastas», a crença de Graça Magalhães no milagre da escrita em fusão com o mundo:
Dá-lhe tempo de receber o azul pela manhã./ Veste depois a boca de olhares húmidos e gastos/ Derrama o corpo suave na grata imoralidade/ E adormece a primeira das formas/ entre ela e tudo o que pode persistir.
Poesia do corpo e de pactos, de entregas e de juras pousadas na mais inquietante lembrança do amor:
Quero estar outra vez no olhar dos lírios/ no despudor do fogo
Ou ainda noutro poema:
Cheguei a pensar no incêndio das mimosas/ era lá que nos encontrávamos a meio de uma invasão/ nas areias bordadas da praia grande.
No contraste com a inquietação da vida, a inquietação da morte, seja ela no que há em si de para sempre ou de recomeço. Quantas vezes se
morre ao longo de uma só vida? E quantas vidas se perdem nas múltiplas vezes onde fomos morrendo. O último poema de Graça Magalhães aponta para essa síntese de finitudes e despedidas, de momentos muito íntimos que vêem em si uma ligação natural à solidão que chega depois do desejo, da intimidade e de todo o amor:
Quando ela morrer num apresto de festa/ inseparável do mistério da sua boca/ ficarão as palavras horizontais/ no rosto assimétrico das lágrimas./ Ficarão as macieiras perfumadas/ os segredos arqueados/ arrancados ao peito em foices de prata./ Ficará o corpo deformado intenso de aromas/ a dor do xisto nas ardósias e nos gritos/ e um país contemporâneo./ Ficará a imagem das flores acumuladas/ num altar azul sob os ombros dela/ ficará o rosto fechado na linha dos olhos/ o sorriso poisado a ternura imóvel/ e a terra fresca aumentada toda aberta. / Ela poderá aí dormir com os olhos dos insectos.
«Lavrar no corpo das algas» é pois uma obra de difícil aproximação, de recriação e releitura, de desafio às nossas perguntas sobre a nossa própria forma de não dar forma à felicidade e de ser no que se não diz que reside o que mais significa e o que mais incendeia, seja esse o incêndio do corpo, das emoções ou da memória.