12 junho, 2008

A Um Canto do Café Martinho

-no ano das mortes de Fernando Pessoa


nada há que eu estime
ou aborreça Fernando

............ atento ao dia soletro caminhos velhos
esses mesmos companheiro deste estigma português do olhar

perco-me no ventre das tabacarias nos centros comerciais
pequenas sujas esborracham narizes de desejo
nas montras de cosméticos e trapos ingleses
vendem-se sem remorso aparente por um passeio até à superfície sonâmbula do fogo
ou por meia dose de nitroglicerina
(há olhares de lua esfarrapada como azeite entornado nas vitrinas)

no Rossio há um calor blasé pela tardinha
um calor igual ao dos dias em que arrastavas o estro e as máscaras
entre o Martinho e o Vale do Rio da esquina
............ só as pessoas mudaram Fernando
............ caminham apressadas são vulgares e alheias
os passeios povoados de crioulos loucos
velhos peritos em driblar a morte
vendedores de heroína imolam a vertigem
............ traficantes de alma escarninha com os olhos virados para o surro
já desapareceram as bancas dos tradutores
de cartas comerciais de import-export
os poetas vagueiam no Chiado despovoados de medo e sem emprego
para pagar o vício da solidão deslumbrada
os computadores dominam tudo
(não consta que se apaixonem
ou vão ronronar às sestas no colo dos donos)
são poliglotas
escrevem sem sentir as cartas todas que cruzam o mundo
contabilizam dólares e libras e florins e fome
com alma virtual
que nunca se cansa de não ser
frios
exactos
impessoais
como convém às máquinas e aos negócios

os cafés soalheiros da tertúlia
aonde as tardes lentas de Lisboa se cumpriam
etéreas como o rumor das sombras
são hoje marmóreos bancos comerciais
gravatas silenciosas e austeras agiotas disciplinadores do caos
em gruta de vampiros

salva-se por enquanto o Martinho da Arcada
por que alguns senhores que da tua vida sabem
mais do que tu imaginaste ou escreveste
decidiram-te génio Fernando (esse amuleto de febres em pátria de videirinhos pesa com’ó caraças)
tu que tudo isso sabias fechaste-te num baú para chatear a malta

és o poeta maior do século XX (ainda falta algum tempo para cumprir o luto)
e assim te alegorizam no local onde
escreveste poemas de marinheiros
guardadores de rebanhos e insultaste a maltrapilhagem da europa
esta europa que aguenta nos ombros a tua inquietude, as tuas sombras e o mau hálito dos finórios que farejam a naftalina dos teus versos à cata de pepitas para pagar a renda
(convenhamos que é muito peso para escasso chão)
a mesma europa que depois de ti nos ignora desconfiada e lorpa

............ o café aonde gozaste a farsa de seres tu-mesmo
............ o outro e múltiplo porque eras grande demais para caber numa alma de duas assoalhadas e saguão com vista para os infernos
............ o café dos teus dramas íntimos
............ virou casa-de-passe dos mirones da província
............ em romagem beata aos lugares badalados pelos media
procurando
quem sabe?
a cadeira onde o teu cu
se refastelava às tardes
enquanto rasuravas com olhar de perfurar astros
um Tejo moribundo rio de desassossegos
aonde as gaivotas se suicidam de angústia em pleno voo
e deglutias
com a figadeira em estrebucho manso
um cálice meio de bagaço da casa
(e olhares míopes vertidos em silêncio mordido nos olhos de água chilra dos rapazes, e os sonetos para a Daisy a contar os pecados que ocultavas nos versos e na vida – e quem pagou as favas foi o Álvaro de Campos)

............ eu vou por aí um tanto sonolento
............ refazendo-me aos poucos da tua morte oficial
............ com pompa mausoléu e circunstância
............ condenando-te à eternidade
que é uma forma civilizada de se livrarem de ti e da maçada metafísica dos teus versos

por que tu não sabes mas eu digo-te
............ como te diria o Raul de Carvalho
............ que anda a acender o rastro das estrelas
que a tua morte de fraque e discursata
foi um bom negócio para a bolsa de valores
podem vender-te à estranja como ao vinho do Porto
como a orla marítima e os jogadores de futebol
............ enquanto eles abriam as garrafas de champanhe
............ e contavam a última anedota do dia
tecnocraticamente exibindo da bolsa a cotação mais alta
como quem ao peito incrédulo aponta
uma pistola de vermes
....................... tu
....................... sacana e sorna
....................... levantavas-te do teu sono aparente
....................... e ias enfrascar-te à conversa com o sonso
....................... do Ricardo Reis
....................... no regresso ao esquife mijavas nas flores
....................... escrevias palavras de ordem nos claustros
....................... e fingias de novo que morrias de cirrose

mas nós sabemos Fernando que morreste
desta mágoa tão nossa e portuguesa
que é transportar um rio a arder dentro do sangue
e ser breve a viagem para tanto peso

Domingos Lobo